Quem nunca chorou com um livro não sabe amar
Crónicas

Quem nunca chorou com um livro não sabe amar

book reading - revista amar

 

Isto de ser conhecida como a escritora do amor e apanhar covid no Dia dos Namorados parece uma cena de novela, mas não é. Foi com uma caixa de bombons em forma de coração, recheada de pequenos corações, que acabou consumida à lareira, entre mantas e livros e jornais espalhados pelo chão, com a febre a dificultar a leitura. Circunscrita ao isolamento, pus-me a cismar nos primeiros livros da minha vida, muito mais importantes do que os primeiros amores, até porque, no meu caso, o primeiro amor em livro foi um belo clássico (“A menina do mar”) e o primeiro rapaz que me entrou no coração foi um grande traste. Pertencia à subespécie do impostor nato, namoriscando com várias ao mesmo tempo e só estancando a infernal máquina de sedução quando sentia as presas paralisadas nas suas garras. Comigo, deu-lhe para encenar uma grande cena de vitimização num banco de jardim, enfeitada com lágrimas e soluços, alegando que desistia, porque já não sabia o que fazer para conquistar o meu amor. Foi uma performance notável. Três semanas depois, trocou-me pela minha melhor amiga (grande amiga, de facto), e eu fiquei a saber o que eram lágrimas de crocodilo.

Felizmente, já tinha a mania dos livros, viajava dentro deles, às vezes colava o meu coração ao do protagonista, outras vezes limitava-me a assistir de camarote, envolvida na trama, de binóculos mentais, feliz por poder voltar à história sempre que as páginas se abriam. Fui a fada Oriana, e com ela perdi momentaneamente as asas, fui Natieska, a rapariga que espera durante quatro noites brancas a chegada do seu amor, fui Zezé que chorou quando o Mundo na sua crueldade lhe cortou Minguinho, o seu querido pé de laranja lima. E fui Buck, o corajoso cão salvo por John Thornton em “O apelo da selva”, e a corajosa Kwei-lan que se libertou dos estigmas da China castradora em “Vento do Oriente, vento do Ocidente”. É-me completamente impossível imaginar que pessoa teria sido sem o contributo destes e de outros livros, mesmo que não tivesse escolhido o ofício de escrever romances de amor.
Vivemos num país que foi, na primeira década do milénio, um grande consumidor de livros. O Nobel de Saramago, o rasgo de Lobo Antunes, as epopeias de Miguel Sousa Tavares, o talento e a originalidade narrativa de Mia Couto e de Agualusa seduziram os portugueses. E eu lá no meio, a contar histórias de amor que eram pretexto para retratar o Portugal da minha geração, a Geração X, que viveu a Expo 98, que fazia muitos planos e geria carreiras de sucesso e que nunca imaginou que o Mundo ficasse nas mãos de alguns líderes despenteados e de um de cabelo mais curto que inicia guerras quando lhe apetece. Somos os pais de Geração Y, os Millennials, que desde os cinco anos nos ensinam a reciclar o lixo e desde os dez nos explicam que o Mundo pode mesmo correr mal por causa das vacas, dos parabenos, dos microplásticos, da calota polar do Ártico e da falta de abelhas. Nós olhamos para a vida, eles olham para o Planeta. Para nós, sem planos não existia a felicidade, nem sequer existia a realidade. E líamos, porque não podíamos assistir a temporadas seguidas de uma série a não ser que comprássemos a coleção completa em DVD, porque os telemóveis só serviam para telefonar e para enviar SMS, porque não existiam redes sociais para nos roubarem anos à vida.

Mas nem tudo está perdido. Não, se reflorestarmos o Planeta e se habituarmos os nossos filhos a ler. É mais fácil do que parece. A esmagadora maioria das crianças que conheço a quem os pais leram livros mantém esse prazer. Apanharam o bicho da leitura e não abdicam dele. Temos essa obrigação, por eles e para eles, de não desistir dos livros, porque os livros servem para muita coisa, mas sobretudo para que a alma nunca seque e o coração nunca deixe de bater mais depressa, mesmo sem a certeza de que um amor feliz vai rodar a chave da porta ao final do dia.

Quem nunca chorou com um livro não sabe o que é o amor. E o amor à vida também começa pelo amor aos livros.

Margarida Rebelo Pinto

NM

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