Um elogio no feminino…
Crónicas

Um elogio no feminino…

Na véspera da comemoração do Dia Internacional da Mulher decidi escrever este apontamento sobre o papel das mulheres na sociedade, nas artes, na política e na ciência.

Nos inícios do século XX, o termo mentalidade não fazia parte do vocabulário dos historiadores. A reabilitação científica da noção de mentalidade é paralelamente empreendida, no âmbito das várias Ciências Sociais, começando pela Psicologia, por Blondel e H. Wallon. Sensivelmente na mesma altura, Marc Bloch, G. Lefebvre e Lucien Febvre alargam as fronteiras da História Social ao domínio das representações coletivas. Em modo explícito, às “maneiras de sentir e de pensar” de diferentes épocas históricas. As fontes alargam-se à literatura, ao cemitério, aos registos judiciais, aos testamentos, à diversidade de documentos. A História das Mentalidades – designação lançada pela Escola dos Annales tem contribuído assim para alargar o inquérito dos historiadores, desfazendo equívocos da vida humana ao longo dos tempos. O endeusar certos acontecimentos, certos protagonistas da história, destacar uma cronologia de acontecimentos balizados por um olhar enviesado das classes elitistas, em detrimento dos acontecimentos coletivos e de massas. A história da vida privada ganha outra visibilidade na sociedade dos inícios do século, onde o politicamente correto da sociedade machista é posto em causa pelas desalinhadas da época, as mulheres instruídas, cultas e com alguma emancipação emocional e financeira. Essas mulheres rasgaram os horizontes à maioria das suas congéneres anónimas, estas por sua vez, igualmente lutadoras, vão fazendo a diferença no dia-a-dia, nas mais diversas partes do mundo.

Volvido um século, o paradigma da mudança tarda a impor-se como uma realidade igualitária entre géneros. Um estudo recente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, pretendeu medir como as crenças sociais obstruem a igualdade de género em áreas como a política, o trabalho e a educação. A notícia ouvida na rádio pela manhã destacava uma das conclusões; 90% dos inquiridos mantêm alguma forma de preconceito contra as mulheres, metade pensa que os políticos homens são melhores e mais de um quarto que é justificável um homem bater na esposa.

É com enorme satisfação que irei falar do papel da mulher na sociedade, nas artes, na política e na ciência. Com uma matrioska em mente, começo por desvendar as histórias de várias Marias – mantendo assim um certo anonimato – apenas viveram na mesma cidade, Paris, mas em períodos de tempo diferentes, outras foram contemporâneas. A cidade não foi escolhida ao acaso, habituada a ser palco das mais diversas revoluções – A Revolução Francesa, o maio de 68 e mais recentemente a revolta dos Coletes Amarelos. Uma urbe acostumada a acolher pensadores, artistas, exiliados, perseguidos, refugiados e emigrantes, em suma, uma cidade cosmopolita.

A primeira Maria, porteira na rua Hoche em pleno coração da cidade luz, uma portuguesa com a instrução primária completa, o exame da 4ª classe feito com distinção, o curso de lavores no patronato. Emigrante em França ao lado do seu marido, em plena década de 60.

A segunda Maria também emigrante forçada por se posicionar a favor da independência da Polónia dominada pela Rússia Czarista.

A terceira Maria, depois de ter estudado desenho, pintura e escultura em Lisboa, vai para Paris em 1928.
Uma quarta Maria encantou com a sua voz, mas no início da sua existência a sua progenitora quis fazê-la cortesã. Durante os seus primeiros anos foi criada pela sua avó e anos mais tarde foi morar no bordel administrado pela sua mãe e com frequência ficava sob o cuidado das prostitutas.

Por fim, uma quinta Maria, filha natural de uma famosa cortesã holandesa de origem judia e como a presença de uma criança interferia com a vida da mãe, foi enviada para uma pensão para raparigas de Auteil, mais tarde deu entrada num convento de Versalhes.

Este relato um pouco paradoxal tendo em conta o tema sugerido, O papel da mulher na sociedade, nas artes, na política, na ciência ontem, hoje e amanhã! Desenganem-se aqueles que pensam que o papel da mulher é apenas ser um laçarote de embrulho, embelezando uma sociedade paternalista. Com alguma ironia e sarcasmo a escritora Sophia de Mello Breyner no seu livro Contos Exemplares, no Retrato de Mónica, ironizava “Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria. Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.”

Costuma dizer-se que a vida não é como começa, é como se desenvolve e como acaba. As ruturas, as oportunidades agarradas com unhas e dentes, a determinação, a resiliência e o inconformismo de fintar o destino traçado, levaram estas Marias a ousar serem iguais a elas próprias e traçarem o seu próprio futuro. De volta às histórias de vida das nossas Marias, irei revelar mais pormenores da sua existência, destapando-as do anonimato.

A primeira Maria (Maria Helena Birra Martins Cruchinho – 1948), desdobrou-se nos mais diversos trabalhos, numa fábrica de baterias, porteira, limpeza de escadas, escritórios, ama de crianças, costura à noite. Nos primeiros tempos sem falar a língua de Voltaire, percorreu de metro a cidade de Paris sem qualquer temor. Na sua dupla jornada, educou dois filhos homens, cuidou do marido, gostava de dançar e ouvir música, Demis Roussos, Claude François, Charles Aznavor, Sheila, Roberto Leal e Amália Rodrigues.

Marie Curie - 1867-1934
Marie Curie – 1867-1934 DR

A segunda Maria (Marie Curie – 1867-1934). Em 1891, a polaca foi para Paris, ingressou na Sorbonne e mudou o seu nome de Maria para Marie. Marie formou-se 1894. Em 1894, conheceu um professor de Física, ambos descobriram o fenómeno da radioatividade, a partir de novos elementos que emitiam espontaneamente radiações. Única mulher a receber dois prémios Nobel, o Nobel da Física em 1903 e o Nobel da Química em 1911.

Maria Helena Vieira da Silva 1908-1992
Maria Helena Vieira da Silva 1908-1992

Uma homóloga da Maria Helena porteira, (Maria Helena Vieira da Silva – 1908-1992) esta pintora insatisfeita com o ensino ministrado na Escola de Belas Artes de Lisboa, num período politicamente instável face ao avanço do fascismo e culturalmente pouco estimulante. Em Paris deslumbra-se com a agitação da capital francesa num período rico na partilha de ideias por parte de artistas plásticos, escritores, músicos e bailarinos. Frequenta espetáculos, museus e galerias, hesitando entre pintura e escultura.

Edith Piaf 1915 – 1963
Edith Piaf 1915 – 1963

A quarta Maria (Edith Piaf – 1915–1963) por sua vez, na época da Segunda Guerra Mundial era a cantora mais importante na França e apresentava-se para as tropas da França ocupada, muitas vezes acusada de traição pelos seus compatriotas. Além disso, algumas fontes afirmavam que ela trabalhava como uma infiltrada da resistência francesa. Em 1946, Piaf gravou a marcante canção La Vie en Rose, uma das músicas mais conhecidas do mundo.

Sarah Bernhardt 1844 – 1923
Sarah Bernhardt 1844 – 1923

A quinta Maria (Sarah Bernhardt – 1844-1923) era uma criança difícil e de saúde frágil, um dos amantes da mãe, o duque de Morny, meio-irmão materno do imperador Napoleão III, decidiu que a rapariga deveria ser atriz, e quando completou 16 anos conseguiu que fosse admitida no Conservatório de Paris.

Como ficar indiferente às histórias de vida destas mulheres excecionais? Algumas anónimas, mas não menos importantes, outras mais conhecidas e decisivas para o desenvolvimento humano.

Katherine Johnson
Katherine Johnson

Na semana passada deixou-nos Katherine Johnson, matemática da NASA que ajudou o Homem a chegar à Lua. Katherine e a sua equipa de mulheres negras na NASA eram conhecidas como “computadores” quando o termo era usado para pessoas que trabalhavam em computação. Trabalhou no Projeto Mercúrio e no Programa Apollo, que levou pela primeira vez humanos à Lua. Johnson foi responsável pelos cálculos que sincronizavam a nave lunar e o módulo de comando em órbita. O astronauta John Glenn, o primeiro a entrar em órbita da Terra, a bordo da cápsula espacial Friendship 7, fez questão de consultar Katherine Johnson antes do seu primeiro voo, em 1962. “Deixam a rapariga conferir os números”, afirmou o astronauta.

Maria de Lourdes Pintassilgo
Maria de Lourdes Pintassilgo

Voltemos ao estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento em que os inquiridos subestimavam a capacidade de liderança das mulheres em termos políticos, em Portugal apenas por uma vez uma mulher ocupou o cargo de primeira- ministra, tendo sido a Eng. Maria de Lourdes Pintassilgo durante cerca de 100 dias, no V Governo Constitucional. Lourdes Pintassilgo foi uma personalidade impar na política portuguesa e uma referência nacional e internacional na defesa dos direitos e interesses das mulheres e da sua igualdade, tanto na esfera pública como na esfera privada.

A evolução da Humanidade passará sempre pelo reconhecimento do papel das mulheres na sociedade nos mais diversos domínios, com direitos e deveres iguais, sem qualquer preconceito ou discriminação.

Em jeito de provocação saudável, deixo este reparo acerca da meritocracia no que diz respeito aos talentos para cozinhar, as mulheres alimentam meio mundo todos os dias, contudo contam-se pelos dedos das mãos, as mulheres laureadas com as famosas Estrelas Michelin. A estatística interna apenas acompanha a tendência mundial, basta lembrar a exiguidade de chefs femininos premiados a nível global – apenas 5% do total de estrelas atribuídas. Em Portugal, apesar das inúmeras chefs de cozinha conceituadas, nenhuma logrou ainda receber uma estrela Michelin, em sinal de reconhecimento das suas longas e prestigiadíssimas carreiras na cozinha.

Com este artigo rendo a minha homenagem a todas as mulheres que todos os dias completam a vida dos outros com a sua capacidade única de trabalho árduo, criatividade e sensibilidade muito própria. Permita-me o leitor um último agradecimento à porteira da rua Hoche, minha mãe, pelo exemplo ao longo da sua vida. Uma mulher anónima, contudo capaz das mais inacreditáveis tarefas, sendo incapaz de voltar a cara à luta.

Carlos Cruchinho

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