Carlos Gonçalves
Pelo que me apercebi ao conhecer a sua história de vida, se há marcas que distinguem a personalidade de Carlos Gonçalves são a coragem e a determinação. Pelo menos, estas duas caraterísticas foram essenciais no momento em que decidiu romper com um destino que parecia marcado.
A sua terra, o lugar de Laceiras, da freguesia de Rio Frio, concelho de Arcos de Valdevez, não tinha nenhuma perspetiva de futuro para um jovem ambicioso. Ainda muito jovem, o seu projeto passava por França, para onde tinha emigrado o seu pai, mas como tantas vezes acontece, a vida trocou-lhe as voltas. O pai regressou à terra quando a mãe teve uma trombose, mas a vontade de Carlos de sair das Laceiras para construir uma vida diferente, não esmoreceu. O Canadá surgiu então como segunda opção, mas não se pense que foi fácil chegar cá. Foi necessário não desistir do sonho, foi essencial engenho e arte, foi preciso fazer pequenas fintas à sorte e… lá está, muita coragem e determinação.
Nesta história, como em tantas outras, há também quem tenha dado o empurrão necessário, ajudando a desbravar um caminho desconhecido. São, afinal, estas pessoas que se apresentam nas nossas vidas como anjos, que iluminam a nossa sorte, são credoras da nossa gratidão e ficam para sempre na nossa memória mais profunda.
A chegada ao “admirável mundo novo”, não foi o que os sonhos de um jovem de Laceiras tinham mostrado. Toronto era demasiado grande para quem nunca tinha saído do seu canto bem pequenino e apresentou-se como uma cidade onde o trabalho era mais duro e muito diferente do que conhecia. Onde a língua era uma barreira e a circulação desafiadora, com streetcars, bus, camionetas e subways, entre a casa e o local de trabalho. Para o jovem Carlos, até comprar uma simples lata de atum se tornou enredo de uma história que guarda, quando chegado a casa, pronto para comer, percebeu que, afinal, tinha comprado comida de gato. Esta e outras histórias povoam a vida de Carlos Gonçalves, que um dia as contará, certamente orgulhoso e com um sorriso na cara, à sua neta, que está prestes a nascer.
A infância
Trabalho no campo, tratar dos animais, viver do melhor que a terra dava… as memórias da infância são boas, mas voltar à terra hoje, com uma outra condição de vida, é muito melhor.
Como são as suas memórias da infância na sua freguesia de Laceiras, Rio Frio, Arcos de Valdevez?
Boas. Claro que não podemos comparar com os dias de hoje porque nós, antigamente, chegávamos da escola e tínhamos que ir para o campo. Eu lembro-me que já andava de volta das raparigas, mas não saía aos domingos sem cuidar primeiro das coisas da lavoura – ir buscar a erva para as vacas ou cortar milho ou tratar delas… tinha depois umas horinhas, mas à hora marcada pelo meu pai tinha que estar em casa. Ele era muito rígido. Mas as memórias são boas. Não podiam ser melhores porque também não tínhamos possibilidades para isso. Eu gosto da minha terra. Gosto dos Arcos de Valdevez. Eu digo-lhe francamente, quando lá vou quase nem saio de lá. Porque tenho a praia fluvial? Tenho tudo o que é preciso lá. Eu gosto muito.
Uma aventura chamada Canadá
São já muitos os anos passados depois da chegada de Carlos Gonçalves ao Canadá, mas podem passar muitos mais e dificilmente se apagarão as memórias de como tudo se processou. Foram necessárias duas tentativas, porque a primeira terminou com um bilhete de regresso a Portugal.
Como foi a sua chegada ao Canadá?
A primeira vez que tentei vir para o Canadá tinha 16 anos, mas quando cheguei ao aeroporto de Toronto fui preso, digamos assim, e mandaram-me embora. Eles não me deportaram porque eu nem cheguei a entrar no país, a bem dizer. E a segunda vez que tentei vir tinha 17 anos. A primeira tentativa foi no princípio de abril, a segunda foi em junho do ano seguinte.
Mas o que aconteceu, nessa primeira tentativa?
Havia aqui uma família, um casal lá da minha terra, que tinha um filho para batizar. Eu então, porque antigamente era muito complicado e muito difícil entrar no Canadá, disse-lhes: “se me puderem ajudar, para eu entrar no Canadá, eu digo que vou batizar o vosso filho e penso que vai correr bem”. Eles responderam: “ah, não há problema, sim senhor”. Pronto, cheguei ao aeroporto, fizeram-me uma entrevista, eu disse tudo o que tinha a dizer e o que lhes tinha dito que ia dizer. Tudo muito bem. Quando telefonam para ela e para o marido, o oficial da imigração perguntou: “então e ele vai ser padrinho de um filho teu?” e ela disse: “não, eu não tenho nenhum filho para batizar”. E pronto, fiquei logo engavetado. Não me algemaram, nem coisa parecida, mas pronto, fui logo mandado de volta para Portugal.
Mas não perdeu o medo, porque voltou a tentar um ano depois…
Não perdi o medo. Estava lá em Portugal e, antigamente, lá não havia futuro. Eu tinha tudo arranjado para ir como emigrante para a França, porque meu pai estava na França, mas infelizmente a minha falecida mãe, nos fins de 75, teve uma trombose e o meu pai teve que regressar. Já não pude ir. Portanto, nessa altura pensei “não tenho outra alternativa. Tenho que ir para o Canadá”. Tinha aqui um primo, falei com ele por escrito, porque não havia telefone, a perguntar se me podia ajudar, e ele respondeu que sim, que me ajudava sem problema. Mas eu não tinha dinheiro, nem para o passaporte e pedi se ele me podia emprestar para o passaporte e para a viagem. E ele disse: “sim, senhor, posso emprestar, mas o teu pai sabe disso? E eu respondi que sim “eu não faço nada sem o meu pai saber”. Mas ele não sabia de nada. Conclusão, o meu primo mandou-me um cheque. Depois comecei a pensar como é que eu agora vou trocar o cheque. Fui à agência que era conhecida. Responderam que teria que levar uma carta para o meu pai assinar porque eu era menor. Agarrei na carta e levei-a, sabia como o meu pai assinava, assinei o nome dele. Fui lá novamente, levei a carta comigo, entreguei e, pronto, tinha o dinheiro para fazer o passaporte e comprar a viagem. E lá venho eu para o Canadá sem os meus pais saberem. Cheguei a Montreal e o intérprete (que era português) disse-me logo: “olha, eu sei que tu não vens para o Canadá para passear. Tu com 100$ não vens passear. Mas só respondes àquilo que eu te perguntar e dizes a verdade. E assim foi. Ele fez-me uma entrevista e tudo o mais, carimbaram-me o passaporte, deram-me três meses para ficar no Canadá. Conclusão, a minha viagem era de Montreal para Nova Iorque. Ele disse-me assim: “tu se fores para Nova Iorque e só depois para Toronto, chegas lá vais ser outra vez entrevistado. E assim não pode ser”. Nunca mais me esqueceu as palavras dele e se ele ainda for vivo, Deus o ajude, porque ele ajudou-me muito também. Ele conseguiu arranjar-me uma nova viagem. Tive que ir de camioneta de um aeroporto para o outro. Ele acompanhou-me sempre e meteu-me no avião para Toronto. E cá estou até hoje, graças a Deus.
E como foi a sua integração em Toronto?
Não gostava nada disto. Queria ir embora. Chorei muito. Chorei. Senti-me um pouco mal. Trabalhava-se muito na altura. Muito, muito. E era um país que, naquele tempo, há 40 e tal anos, era um pouco racista. Pronto, temos que dizê-lo, era um pouco racista. E trabalhava-se muito. Nós vínhamos habituados a sair, íamos ao comércio ou dançar um bocadinho nos fins de semana. Aqui não dava para isso. Aqui era trabalho/casa, casa/trabalho… mas depois adaptei-me. Trabalhava de dia, ia para a escola de noite.
Para estudar o quê?
Estudar inglês. Antigamente havia uma sucursal da George Brown na College/Augusta, mesmo do lado nascente, e fui lá inscrever-me. Eu sempre fui muito ambicioso e gosto de andar à frente. Queria tirar um curso. Só que me pediram o passaporte e eu disse “amanhã trago o passaporte”. Nunca mais lá apareci porque eu estava ilegal.
Quantos anos esteve ilegal?
Três, quatro anos. E então inscrevi-me noutro sítio para o que se chamava Second Language. Levava aquilo muito a sério. Havia pessoas que iam para lá só para passar tempo, mas eu não. Eu ia para lá para aprender. E, felizmente, aprendi. E pronto, talvez não fale o idioma 100% como o canadiano, mas para mim sempre chegou. E escrevo e leio.
Os caminhos de vida profissional
A vida de “pá e pica” (construção) acolheu Carlos Gonçalves, como sucedeu com tantos outros portugueses, quando chegou ao Canadá. Trabalhou muito, “muito, muito”, teve altos e baixos, mas nunca desistiu de prosseguir os seus sonhos. Ambicioso, Carlos foi evoluindo e não virou as costas aos desafios que foram cruzando os seus caminhos de vida. Hoje, para além da sua empresa de construção, que ainda existe embora esteja numa fase de pausa, ajudou a levantar a empresa de precast, que está agora nas mãos dos dois filhos e tem a quinta, onde vive com a sua mulher e grande companheira de vida, e onde cuida das suas vacas, ovelhas, galinhas e outros animais.
Relativamente às suas etapas de vida profissional, começou por trabalhar na construção?
Comecei no “pá e pica”, como se costuma dizer, com um sujeito que era de Braga, que me ajudou muito também. E somos amigos ainda. Mas ele só trabalhava de abril até outubro ou coisa assim parecida. Quando vinha o frio não podíamos trabalhar e eu em outubro fiquei sem trabalho. Fiquei sem trabalho e sem dinheiro. Paguei ao meu primo que me emprestou o dinheiro para eu vir e paguei ao meu falecido pai a primeira viagem. Portanto, fiquei sem dinheiro. E eu não conhecia assim muita gente, mas havia um café em Toronto que se chamava Cecilia Icecream. E a gente nova parava lá quase toda. Encontrei lá um sujeito da minha terra e perguntei-lhe se não tinha trabalho, na construção. E ele disse-me “eu posso arranjar-te trabalho, mas como é que vais? Não tens carro, não tens nada”. Pedi-lhe a direção e fui para uma cabina do streetcar, que tinham os mapas da cidade e assim foi. Eu morava na Brock, apanhava o streetcar, que ia para a Yonge, metia-me no subway até à última paragem e depois ia na camioneta até ao trabalho. Fiz isso muitos dias. Tempos depois, andava lá um rapaz dos lados de Leiria ou coisa assim parecida, tinha um carro e eu pedi-lhe “olha, eu pago-te, se me trouxeres eu agradecia”. Foi assim que comecei a trabalhar lá naquela companhia. Era uma companhia italiana, tiravam a pele e os ossos à pessoa, mas eu nunca fiz parte de fraco. Mais tarde, mudei de companhia. Deram-me a possibilidade de fazer de encarregado. Houve uma altura em que no sítio onde andávamos a trabalhar, um sujeito que tinha uma companhia e que me viu a trabalhar com a equipa que eu tinha, que era fabulosa, perguntou-me quanto é que eu queria para trabalhar para ele. Ofereceu-me dinheiro e o que eu queria era dinheiro e fui trabalhar para ele como encarregado também. Ora, quando cheguei lá, ele tinha gente que não era ao meu gosto, não prestava para nada. Só trabalhei lá um dia, mas esse indivíduo falou-me novamente e disse que me dava sociedade na companhia e eu aproveitei logo. E formei uma equipa. Estivemos desde 83 até 89 juntos. Nesse ano, houve uma crise enorme, não havia trabalho em lado nenhum. Era pessoas a perderem casas, a pessoas a perderem os trabalhos. E nós, perdemos também o trabalho. Fechámos. Conclusão, eu fiquei a zero, sem dinheiro nenhum. Nem eu, nem a companhia, inclusive. Eu só tinha uma parte da companhia, mas o sócio maioritário não pagou o acerto dos trabalhadores. E eu, para ficar com a cara limpa, porque sempre gostei de andar com a cara limpa em qualquer lado, do meu bolso paguei aos trabalhadores, mas fiquei sem dinheiro. Tive que vender a minha casa para pagar as dívidas da companhia. Paguei tudo. Fui para uma casa de renda. Estive lá um ano, salvo erro, mas sempre com a ajuda da minha esposa e dos meus filhos que nunca me deixaram. Sempre me apoiaram. E eu então, nessa altura, comecei a trabalhar novamente por minha conta. Fui aos fornecedores e disse-lhes “olha, eu vou começar, mas não tenho dinheiro para vos pagar. Em vez de me darem 30 dias para pagar as faturas, preciso de 60 dias. Disseram-me logo que não havia problema. Depois falei com o builder e tive o mesmo apoio. Reuni os rapazes que faziam equipa comigo e disse: “eu pago-vos todas as semanas ou melhor vou fazer cheques todas as semanas, mas vocês só os podem levantar de 15 em 15 dias”, que era quando eu recebia. Todo o mundo concordou. Não houve problema. Felizmente, nunca veio um cheque para trás. Felizmente, paguei tudo e comecei a andar para a frente e, graças a Deus, cheguei a ter 30 homens, cheguei a fazer escolas, a fazer fábricas, a fazer casas. Com a ajuda das pessoas que me ajudaram e dos meus trabalhadores.
A empresa de precast nasceu como?
Eu era sócio de um sujeito e de um primo meu, numa empresa de precast, mas disse-lhes logo que não ia tomar conta daquilo. Eu já tinha a minha empresa para gerir. Portanto, eu entrei só com dinheiro. Mais tarde, a minha esposa tinha ido a Portugal e eu, num domingo, peguei no meu carro e fui dar uma volta pelos trabalhos, e vi muito material estragado no chão. Aquilo era uma coisa horrível. Cortou-me o coração ver aquilo. Na segunda-feira disse-lhes logo que não queria mais fazer parte da empresa. Pedi o meu dinheiro e larguei a empresa. Portanto, isto foi em agosto, mais ou menos em outubro estávamos uma noite a jantar e os meus filhos, principalmente o mais novo, começaram a perguntar porque é que eu não abria a minha própria empresa de precast. Falei com eles, porque eles são graduados, o mais velho da universidade e o mais novo do college e disse: “se vocês querem, eu consigo abrir a companhia, estou lá um ano ou dois, oriento-vos e depois vocês tomam conta”. E assim foi. Comecei a companhia, estive lá um ano ou dois, passei-a para os meus filhos e eles lá estão, felizmente, graças a Deus.
Então e este lado do seu mundo – verde, cheio de ar puro, cheio de animais. Como é que isto surgiu na sua vida?
Olhe, surgiu muito fácil. Eu tinha um terreno mais abaixo, na vila de Milton. Fiz lá a minha casa, quanto a mim, uma casa muito bonita e jeitosa e tinha terreno. Uns belgas andavam atrás de mim, para eu vender o terreno. Mas eu nem queria falar, nem tampouco ouvir. Entretanto, o dono desta quinta era um português e somos bastante amigos. Estávamos de férias em Portugal, as esposas andavam lá no comércio a fazer as compras e nós fomos tomar um café aos dois. Ele disse: “olha, vou vender aquilo, não quero aquilo é muito terreno para mim”. Ora, eu como sempre gostei de terreno, disse logo: “eu compro”. Ele chegou de Portugal e num domingo eu disse: “olha, arranja uma testemunha para fazermos negócio”. E assim foi. Fizemos o negócio. Eu vendi a minha casa e estou aqui há seis anos.
Nota-se bem que tem um carinho especial com os animais e eles consigo. De onde lhe vem este gosto por cuidar de animais e de estar perto deles?
Eu era garoto, andava na escola e até antes, já tinha que tomar conta das vacas lá na minha terra, em Portugal. Tinha que ir cortar erva para elas. Tinha que ir com elas para o monte, para os campos de pastagem e tudo o mais. E fui habituado neste sistema. A trabalhar no campo, a sachar milho com a minha falecida mãe, com a minha irmã, tudo isto foi parte da nossa vida. Portanto, já desde pequeno que eu venho habituado nisto. E gosto.
Como é que é o momento de enviar as suas vacas ou ovelhas para o matadouro? Como é que isso funciona na sua mente?
Custa-me muito. Quando tenho que as levar ou chamar alguém que as leve para o matadouro, custa muito. Custa muito e eu até, por vezes, nem quero ajudar a carregar, porque, pronto, uma pessoa cria os animais com carinho. Tenho paixão pelos animais, sinto carinho por eles e, claro, sinto-me um pouco mal, mas pronto. É um dia ou dois, depois passa. Temos que saber que é a nossa vida. Já tive aqui quase 30 vacas, mas era muito. Portanto, tenho que vender porque também não quero ter aqui muita vacaria.
O sonho que falta cumprir e a alegria de ser avô
Um homem que já construiu tanta coisa na sua vida, que sonho é que falta cumprir?
Agora o sonho que tenho é ter saúde e dar mais uns passeios até Portugal. Isto é… estar por aqui e ter um bocadinho de mais calma e tranquilidade. Porque a idade não perdoa e sabe como é, se a gente não dá umas voltas enquanto pode fisicamente e monetariamente, depois também não vale a pena.
O senhor Carlos vai ser avô, em breve. O que é que vai dentro do seu coração?
Olhe… dentro do meu coração vai muita alegria por isso acontecer e só peço a Deus que que venha sã e correta. É uma rapariga pelos vistos, é a minha primeira neta e vai ser aceite com muito amor e carinho.
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