Centro Abrigo
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Centro Abrigo

revista amar - centro abrigo - toronto
Créditos: Carmo Monteiro

 

O Centro Abrigo, em Toronto (1645 Dufferin St), está em atividade há cerca de 30 anos.
É uma instituição sem fins lucrativos e tem como objetivo a integração dos recém-chegados ao Canadá, consciencializando a comunidade dos problemas de cariz social, nomeadamente os jovens, idosos e vítimas de violência doméstica.

Dos vários milhares de utentes anuais, a grande maioria fala português.
Este mês estivemos à conversa com três mulheres que diariamente simbolizam o apoio à comunidade no Centro Abrigo.

 

revista amar - cidalia pereira - centro abrigo
Créditos: Carmo Monteiro

 

Cidália Pereira

 

Revista Amar: Quem é a Cidália Pereira?
Cidália Pereira: A Cidália é filha de emigrantes portugueses. Nasci numa aldeia pequenina, Cabreiros, freguesia de Salir de Matos, Caldas da rainha. O meu pai veio primeiro para o Canadá e depois, quando tinha 4 anos, vim com a minha mãe ter com ele. Cresci com a cultura e a língua portuguesa em casa. Entrei no programa chamado Settlement, que ajudava a comunidade portuguesa e gostei muito desse trabalho. Daí apareceu a oportunidade para trabalhar no Centro Abrigo.

RA: Há quanto tempo está com o Centro Abrigo?
CP: Estou há 21 anos.

RA: Em qual programa começou?
CP: Primeiro comecei por ajudar os clientes, mas a seguir surgiu o convite para o programa da Violência Contra a Mulher e Contra a Criança.

RA: Qual é a perspetiva das conselheiras?
CP: As conselheiras trabalham numa perspetiva feminista e anti opressiva, reconhecendo que os indivíduos passam por eventos traumáticos que lhes afetam.

RA: Quando se fala de violência contra a mulher, o primeiro pensamento que ocorre sobre a causa é a ignorância. Concorda?
CP: No passado, sim. Atualmente as pessoas sabem que existem os direitos humanos, então quando essas pessoas partem para a violência já é mais por malicia… elas sabem que estão erradas, mas fazem-no na mesma.

RA: Como é que a comunidade vê esta situação?
CP: Eu acho que tem havido mais abertura na comunidade sobre esta questão e o estigma da violência contra a mulher, porque no princípio ainda havia aquele sentimento de “entre marido e a mulher, não se mete a colher’, ou seja, ninguém se metia nos problemas familiares dos outros, mesmo que estivessem a ver o marido a ofender ou a bater a mulher em publico. Infelizmente ainda acontece, mas não tanto como há uns anos atrás e isto não acontece só na comunidade portuguesa! Isto acontece em todas as comunidades, culturas, classes económicas e sociais.

RA: E o que leva as pessoas a este tipo de comportamentos abusivos e violentos?
CP: Podem ser várias as razões, como por exemplo ter ou exercer poder sobre a outra pessoa. Por uma questão cultural, ainda há aquele pensamento que “quem manda em casa é o homem”, que tem mais privilégios, direitos e autoridade sobre a mulher. Um homem com este tipo de pensamento, tenta impor-se com métodos de ameaças, ofensas, manipulação e uso de força. Também pode usar as mesmas táticas ou mostrar um certo comportamento de poder e controlo sobre o patrão ou colegas no trabalho, mas é mais moderado… enquanto que em casa os comportamentos abusivos são usados porque acha que deve e pode para conseguir o que quer e para se sentir superior à mulher.

RA: Porquê em casa?
CP: Porque em casa é onde acham que têm o poder… onde ninguém vai ver, ouvir ou denunciar. Quando falei há pouco da malicia, foi porque estes homens sabem que não deviam ter aquele comportamento, mas têm-no na mesma porque sabem que o podem ter. Por exemplo, quando apertam o braço ou batem, fazem-no em sítios onde as negras não fiquem à vista ou apertam o pescoço e dizem “desta vez foi um aviso, para a próxima mato-te e aí de ti que digas a alguém”. As ameaças, abusos verbais, as manipulações emocionais e psicológicas fazem tão mal como as agressões físicas e que dominam a vítima ao ponto de não falarem ou pedirem ajuda, com medo das consequências.

RA: E na sua experiência, durantes estes anos no programa, o que causa o comportamento abusivo a se manifesta?
CP: A falta de emprego, situação financeira precária, uso de drogas ou álcool podem levar uma pessoa insegura, com medos ou que não sabe pedir ajuda, resolver o problema ou problemas usando comportamentos agressivos e abusivos.

RA: Por vezes ouve-se que a mulher deveria ter outra postura para evitar o abuso…
CP: … a mulher não tem culpa de ser abusada. Ela não é responsável pelo comportamento do parceiro. Ela só tem poder sobre si e só pode ser responsável pelos seus próprios atos.

RA: Mas as mulheres não reconhecem que algo está mal? Por exemplo, quando estão entre outros casais onde há respeito mútuo?
CP: Para algumas mulheres, muitas vezes os abusos começaram desde do princípio ou foram aumentando gradualmente e então elas acham que é normal, porque “é só quando ele bebe”… Não! Se ele bebe e sabe que quando bebe age mal, então deve parar de beber ou que peça ajuda se for preciso – ou “ele foi sempre assim, não posso fazer nada”… Podem pois e muito, pedir ajuda! Depois temos aqueles casais que só porque tiveram uma desavença, não quer dizer que vão estragar anos de um casamento, claro que temos que analisar os comportamentos e ver onde está a fundação do casamento e se há respeito… mútuo ou se só é de um. Cada caso, é um caso diferente. Nós apresentamos opções e depois a mulher escolhe o que quer fazer ou o caminho que quer seguir e só depois é que fazemos um plano adaptado às escolhas e necessidades dela.

RA: Que tipo de serviços podem essas mulheres encontrar quando vos procuram?
CP: Nós temos muitos serviços para oferecemos às mulheres que procura a nossa ajuda. Por exemplo, criamos um plano em conjunto para responder as suas necessidades, sejam elas informações, apoio emocional, apoio para aceder a serviços governamentais, criar um plano de segurança; chamar a polícia; procurar um advogado; como entra no sistema judicial; procurar serviços de saúde – a saúde da mulher não é somente a saúde física, também é a saúde mental e quando a nossa saúde mental está bem e saudável podemos lidar melhor com os desafios da vida -; como trabalhar com a Sociedade de Proteção da Criança (Children’s Aid Society), fazer um pedido para um apartamento com subsídio de renda; pedir ajuda financeira; aplicar para uma creche, entres outros.

RA: Para além do aconselhamento individual, que mais podem esperar estas mulheres no Centro Abrigo?
CP: Para além do aconselhamento individual oferecemos grupos de apoio para a mulher, onde têm a oportunidade de reflexão e aumentar as ferramentas para encarar os desafios da vida. Nós, mulheres, temos poder e resiliência para superar estes desafios.

RA: Falando hipoteticamente, qual seria o plano para uma mulher que esteja a viver numa relação abusiva com agressões físicas com um filho e que queira sair dessa relação, mas não tem condições para o fazer?
CP: Primeiro procuramos tentar saber se tem familiares ou amigos que lhe possam dar abrigo, porque será sempre mais confortável estar entre pessoas que a acarinhem e a apoiem nesta fase. Caso não haja um lugar, temos o sistema dos Abrigos das Mulheres, para quem ligamos para arranjar um lugar numa residencial para esta mãe e o seu filho. Às vezes é difícil conseguir para a primeira noite, porque, infelizmente, os lugares nas residenciais esgotam e já tivemos uma situação em que tiveram que dormir uma noite no carro e outra no Tim Hortons. Depois começamos logo a fazer um plano para que essa mulher possa reorganizar a sua vida, como arranjar um sítio para morar, o que às vezes pode demorar entre 6 meses a um ano porque as rendas em Toronto são caras ou porque tem que esperar que as casas subsidiadas pelo governo, que têm lista de espera, abram uma vaga.

RA: Ouve-se falar que durante a pandemia o número de violência doméstica contra a mulher e a criança aumentaram. Consegue dizer, aproximadamente em percentagem, o aumento de pedidos de ajuda ao Centro Abrigo?
CP: Entre 20% a 30%. Quando fechámos houve poucas chamadas, porque as pessoas pensaram que não estávamos a atender o telefone, mas a partir de setembro de 2020 começámos a receber telefonemas e vimos o aumento de casos. E os casos eram de todo tipo e não só de casais… tivemos quem não conseguisse viver sozinha financeiramente e que se viu forçada a regressar à casa com os filhos, porque a alternativa era ficar na rua. Também houve casos em que havia guarda partilhada dos filhos em que a pandemia serviu de desculpa para todo tipo de situações abusivas de maneira a desorganizar, desestruturar e destabilizar a vida da mulher e das crianças.

RA: E aquelas mulheres que já estavam no bom caminho de refazerem as suas vidas antes da pandemia, conseguiram seguir o plano?
CP: O que posso dizer, é que a pandemia desestruturou muitas pessoas. Para aquelas que conseguiram manter o seu trabalho durante a pandemia, foi mais fácil. Não podemos esquecer que os tribunais também estiveram fechados e os processos pendentes ficaram parados e para quem estava dependente da finalização dos processos tudo se tornou mais complicado, porque não podiam pedir os benefícios, como o abono de família, etc..

RA: Num relacionamento, a que tipo de sinais de abuso, deve uma mulher estar atenta?
CP: Deve estar atenta aos ciúmes doentios, ofensas e ameaças à integração física, agressões físicas, controlo obsessivo ou financeiro… mas há outros sinais.

RA: O que devem fazer as mulheres para obter mais informações?
CP: Uma mulher que queira obter mais informações, basta ligar-nos! Nós estamos abertos, com serviços modificados, de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h ou podem, também, ligar para a linha aberta 24 horas para mulheres vítimas de violência doméstica: 416-863-0511, com acesso a interpretes. É só dizer em que língua deseja falar. O governo provincial também esta a promover uma campanha educativa Neighbour, Friends and Families. Foram criados vídeos sobre a violência doméstica traduzidos em várias línguas.

Veja o site, onde os vídeos estão disponíveis em português:
www.immigrantandrefugeenff.ca/resources-list

 

revista amar - marilia dos santos - centro abrigo
Créditos: Carmo Monteiro

 

Marília dos Santos

 

Revista Amar: Marília, fale-nos um pouco de si?
Marília dos Santos: O meu nome é Marília dos Santos. Sou conselheira no Centro Abrigo e também sou a coordenadora do programa da 3ª Idade. Cheguei ao Canadá com 16 anos, não lhe vou dizer a minha idade (risos), mas já cá estou há muitos anos. Na época, vim contra a minha vontade e depois chegou uma altura que pensei que ou eu continuava a lamentar-me pela minha pouca sorte de ter saído de Portugal – numa altura crítica, porque tinha acabado o liceu e tinha as minhas amizades, o que para mim foi um choque – ou aceitar que estava aqui e seguir em frente e ir à luta, como se costuma dizer e optei por aceitar. Talvez inconscientemente, trabalhei sempre com a comunidade portuguesa, facto que também me ajudou a adaptar-me a este país, mas sem deixar de trabalhar com a comunidade canadiana. Também estudei aqui e depois de vários empregos, no meu primeiro emprego a sério eu era responsável e coordenadora pedagógica dos programas extracurriculares, onde andava de escola em escola a trabalhar com os professores, etc. Devido a cortes nas direções escolares, acabei por sair e tive a sorte de começar a trabalhar no Centro Abrigo.

RA: Há quanto tempo está com o Centro Abrigo?
MDS: Há 19 anos.

RA: Em qual programa começou?
MDS: Eu aqui já fiz de tudo! Comecei no Partner Assault Response Program, que é um programa para homens que foram julgados pelo tribunal por violência doméstica. Entre outras coisas, fazia grupos psicoeducacionais – um grupo era em português e três em inglês –, fazia contactos com os tribunais, delegados de vigilância (Probation Officers)… é um programa muito intenso! E como mulher, não é propriamente fácil trabalhar com estes homens, contudo tratei-os sempre com respeito, para que aprendessem a tratar os outros com respeito. Para mim, assim que entravam pela porta, eram como outra pessoa qualquer e eu tinha um objetivo – seguir o currículo, que na altura era de 16 semanas. Como o programa era longo, cheguei a fazer amizades com alguns. O sucesso do programa também se devia, em parte, à maneira como nós nos dirigíamos e conversávamos com eles. Adorei fazer este programa, mas exige muito de nós. Mas, ainda assim, trabalhei durante 9 anos neste programa, que ainda existe… e quando o deixei de fazer, cheguei a fazê-lo em part-time. Depois comecei a trabalhar no Settlement, que é um programa que ajuda recém-chegados e os que já cá estou, mas que não falam inglês e que precisam da nossa assistência no preenchimento de formulários, fazer telefonemas, etc.. Também trabalhei num programa para pais que tem contacto com a Sociedade de Proteção da Criança (Children’s Aid Society) e que na altura tinha a duração de 10 semanas onde ensinávamos competências parentais, os tipos de comunicação, o impacto que o stress e a violência tinham nas crianças, etc.. Também é um dos programas que ainda temos, mas é pena não termos mais aderência. Já vi, nesta sala, homens a quebrar e a chorar, quando têm a noção do impacto das suas atitudes nos filhos e muitas vezes faz aquele “clik” com o passado, porque, infelizmente, na maioria eles achavam que por irem trabalhar, pôr comida na mesa ou o facto de não lhes bater como os próprios pais lhes bateram, fazia deles bons pais. Então, através de psicoeducação ensinávamos e fazíamos vê-los as coisas de maneiras diferentes… e quem quer, consegue! E finalmente comecei a fazer aconselhamento, que não queria fazer na altura, mas que disse que o fazia desde que não fosse permanente e afinal estou a até hoje a fazer aconselhamento a mulheres vítimas de violência.

RA: … e a pandemia piorou os casos, não é?
MDS: Sim, temos tido muitos casos que são muito sérios.

RA: E quando iniciou o programa da 3ª Idade?
MDS: Começou há 11 anos e que tem sido um sucesso enorme.

RA: Quantas pessoas estão no programa?
MDS: Antes da pandemia, tínhamos por volta de 60 e 80 pessoas por dia.

RA: E o que é que o programa oferece a estas pessoas?
MDS: Temos atividades recreativas, educacionais e de cariz social.

RA: Devido há pandemia, como foi para estas pessoas ficarem sem este espaço onde podiam conviver, divertir-se, ver os amigos, dançar e cantar, pintar, etc.?
MDS: Nós suspendemos o grupo a 12 de março de 2020, depois de celebrar, com algum receio, o Dia Internacional da mulher. Na altura pensámos que seria por um período de 2 semanas, mal sabíamos nós o que vinha pela frente. Contudo, depois de uma conversa com eles, nós dissemos-lhes que precisávamos da ajuda deles e como havia 13 mesas, pedimos que cada mesa elegesse uma pessoa, que seria responsável, a quem chamámos capitães, por telefonar a cada membro da sua mesa para saber se estava tudo bem ou se precisavam de alguma coisa e depois comunicava-nos, porque não nos ia ser fácil contactar todos… neste momento tenho 125 seniores na lista, que contactamos periodicamente. E na verdade, esta ideia de criar capitães caiu do céu! No verão, chegámo-nos a encontrar no parque, contudo os capitães continuam a fazer os telefonemas.

RA: Qual foi a maior preocupação que tiveram?
MDS: Eu não queria que eles pensassem que nós os tínhamos esquecido e o que poderíamos fazer para que eles soubessem que nós continuávamos aqui para eles. E isso foi a minha prioridade. No Natal entreguei um postal pessoalmente a 75 seniores e 50 foram por correio, porque alguns moravam longe e outros não estavam em casa. Mas antes disso, também fiz visitas surpresa, nunca lhes dizia que ia… batia à porta e corria para o passeio e falava de longe. Parece banal, mas para eles era muito importante.

RA: Mas, também ouvi dizer que existe uma página de Facebook…
MDS: … sim, criei uma página e que conta com 64 amigos (sorriso). Na página dou-lhes o bom dia de manhã porque acho muito importante, celebramos aniversários, partilhamos informações, jogamos jogos, começámos a fazer grupos virtuais através do Messenger, ou seja, tento mantê-los ocupados.

RA: E sem querer ferir suscetibilidades, houve casos de seniores a passar necessidades?
MDS: Sim, houve.

RA: E como ajudaram esses seniores?
MDS: Infelizmente, não podíamos ir a casa deles, mas tivemos quem fizesse donativos a quem nós passámos a informação de quem precisava de ajuda e eles iam lá entregar diretamente. Também havia aqueles casos, em que as pessoas não podiam ir às compras e nós arranjámos quem fosse e que depois entregava.

RA: No ano passado, como é óbvio, não puderam celebrar o 10º aniversário do grupo…
MDS: … exato, mas no dia 2 de novembro, vamos juntar os capitães num almoço de agradecimento por terem tomados tão bem do grupo deles e simbolicamente vamos celebrar o 11º. Aniversário, porque infelizmente ainda não estamos abertos e não podemos juntar todos no salão.

RA: Falando em salão… o grupo vai ter uma surpresa quando regressar!
MDS: Se vai… apesar de não termos subsídios diretamente para este grupo, temos tido a sorte de receber donativos e somos muito gratos por isso e que possibilitou a renovação do salão e da sala dos computadores. Ainda faltam algumas coisas, como móveis e eletrodomésticos, mas já falta pouco para concluir a renovação. Estou ansiosa para ver os rostos deles quando eles entrarem e virem tudo novo! Não há como agradecer à pessoa que possibilitou esta renovação.

RA: Então, para quando a inauguração?
MDS: Para breve, porém tudo depende das restrições dos governos. Contudo, para já não vamos reabrir no modelo que tínhamos. Estamos a pensar em fazer pequenos grupos de 25 pessoas que vão vir uma vez por semana.

RA: E já têm em mente como vão fazer os grupos?
MDS: Sim. Os primeiros grupos a vir são aqueles que têm pessoas que vivem sozinhas.

RA: Mas isso também vai mexer com o programa existente?
MDS: Sem dúvida e por isso vamos ter que o alterar. Uma das alterações é que não vamos servir almoços, mas o lanche vai-se manter no programa e vamos pôr uma cestinha para quem poder deixar um donativo para ajudar nas despesas – pão, leite, fruta etc. -, mas para já só dá quem pode! Claro que este novo sistema não vai agradar a todos, mas a saúde e a segurança de todos está em primeiro lugar.

RA: A nível profissional e pessoal, como tem sido trabalhar para o centro?
MDS: Em termos profissionais e desenvolvimento pessoal o trabalho, que fazemos no centro, tem sido uma aprendizagem constante. Trabalhar com as pessoas e ouvir as suas histórias – a maioria são histórias tristes e de sofrimento, mas também muitas histórias de superação e com a pandemia histórias de resiliência e atos de bondade… nunca tive esta conversa aqui dentro, mas ouvir as suas histórias de vida tornaram-me uma pessoa melhor.

 

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Créditos: Carmo Monteiro

 

Valéria Sales

 

Revista Amar: Quem é a Valéria Sales?
Valéria Sales: Eu sou brasileira, de Santos – São Paulo, mas o meu sotaque é mais carioca porque vivi durante algum tempo no Rio de Janeiro e cheguei há 25 anos ao Canadá. Sou casada há 35 anos e tenho duas filhas. Atualmente sou a Team Lead do Programa de Desenvolvimento e Integração Comunitária e Coordenadora dos voluntários, no Centro Abrigo.

RA: E o que a levou emigrar?
VS: Com certeza a qualidade de vida… eu e o meu marido não gostamos de dizer que foi por “causa das meninas”, porque é pôr uma grande responsabilidade em cima delas, mas acredito que nós viemos por uma questão de melhor qualidade de vida para a nossa família, para nós dois e para elas. A minha irmã mais velha já estava cá – mas que já regressou ao Brasil e agora só estamos nós aqui – e na época achávamos que seria mais um campo aberto para as nossas meninas e foi realmente! A minha filha Ana Carolina com 32 anos, que está muito bem graças a Deus, é formada com pós-graduação e tem um bom emprego e a minha filha Ana Luísa com 29 anos também está muito bem. Profissionalmente, ambas são independentes e era isso que procurávamos para elas, mas mais que isso e em primeiro lugar procurávamos melhor qualidade de vida para nós e hoje, eu e o meu marido, quando olhamos para trás confirmamos o que conquistámos.

RA: Há quanto tempo está com o Centro Abrigo?
VS: Há 21 anos, comemorados no fim de setembro deste ano, mas comecei como voluntária 2 anos antes, por isso, na verdade já estou há 23 anos a trabalhar com o centro.

RA: O que a levou a voluntariar-se?
VS: O meu primeiro contacto com o Centro Abrigo foi quando chegámos ao Canadá. Como recém-chegados com duas crianças, uma de 6 e a outra de 3 anos, nós falávamos entre nós que não conhecíamos ninguém e não era fácil. Entretanto, ouvimos falar de um programa chamado Sucesso às 6, que tinha outros casais e outras mães e pensei “porque não ir lá conhecer essas mãe e casais e fazer algumas amizades”, porque nós não tínhamos amigos e praticamente não conhecíamos ninguém. E foi assim, que conhecemos o Centro Abrigo. O meu marido foi para o mercado de trabalho e eu fiquei em casa com as meninas até elas irem para a escola e pensei que tinha chegado a hora de estudar inglês e fazer um trabalho voluntário. Como já conhecia o centro, pensei voltar e fazer voluntariado no Sucesso às 6 e assim foi. Fiz voluntariado por 2 anos no Sucesso às 6.

RA: E o que é o Sucesso às 6?
VS: Este programa nasceu em 1996, quando houve uma mudança na lei em relação às palmadas, ou seja, desde então foi proibido dar palmadas para se disciplinar as crianças ou os filhos. Mas, nós, sabemos que há essa cultura de que uma “palmada” ou “palmadinha” não tem problema, contudo não faz sentido porque se uma palmadinha resolvesse o ploblema, só se dava uma e tudo ficava resolvido. Então o Sucesso às 6 foi exatamente criado para ensinar e educar essa “disciplina positiva”, trabalhar os limites sem a necessidade de dar a tal “palmadinha”, porque há outras formas de educar as crianças. Claro que se tem que impor limites, mas usando uma linguagem positiva, da distração, da consequência, de acordos e de forma leve. O programa consiste em oito encontros e cada encontro tem um tema diferente onde falamos sobre a fala-linguagem já que estamos num país bilingue, falamos sobre o impacto de uso de violência no desenvolvimento da criança, falamos sobre o xi-xi na cama e sobre a época da fralda, falamos sobre a rivalidade e ciúmes entre irmãos, etc.. Estas mães estão sozinhas, longe dos seus familiares e precisam de apoio e orientação sobre as diferentes fases.

RA: E como passou de voluntária a conselheira a tempo inteiro?
VS: A história é interessante. A facilitadora na época quando soube que eu era fonóloga com pós-graduação em psicomotricidade e desenvolvimento da criança, passei praticamente a ajudá-la a facilitar o programa e até hoje faço o programa Sucesso às 6. E logo surgiu uma oferta de trabalho para trabalhar com recém-chegados da comunidade brasileira, onde as minhas experiências como recém-chegada e de tudo por que tinha passado, serviriam para ajudar esses recém-chegados. Ao mesmo tempo que surgiu esta oportunidade também apareceu a oportunidade para trabalhar com angolanos, então foi uma outra pessoa trabalhar com esse grupo de recém-chegados.

RA: O que significa trabalhar neste centro?
VS: Sinto que é como uma missão, pois acredito muito no trabalho que fazemos, na nossa equipa e também acredito na nossa comunidade que nós precisamos. O que mais me fascina em relação o Centro Abrigo, é que nós estamos sempre atentos às necessidades da comunidade.

RA: Como descreve o seu trabalho desenvolvido no Centro Abrigo?
VS: Eu acredito muito que para além da barreira da língua existe outra barreira maior, a da informação. Por exemplo, no meu país de origem onde sou fluente na minha língua, se precisar de pedir a minha reforma um dia, eu vou precisar de ajuda. E aqui é igual para os recém-chegados ou mesmo para quem já esteja cá há muitos anos, pois se nunca pediu esse benefício ou nunca precisou e nunca teve essa informação, precisa quem ajude e é ai que entra o centro. A minha supervisora na época, Maria José Levy, com quem trabalhei muitos anos é que me orientou e ajudou… eu costumo dizer que foi ela que fez a Valéria Sales que sou hoje e a quem devo muito neste setor, ela é que me ensinou tudo, sobre tudo para que eu pudesse e, até hoje, possa ajudar as pessoas que nos procuram.

RA: O que acha do trabalho voluntário?
VS: Eu acredito muito no trabalho voluntário e que o voluntariado dá uma experiência e uma ideia como o sistema funciona. Esse trabalho de voluntariado tem que ser para os dois lados, ou seja, tem que ser para agência e para o individuo e por isso acho que o voluntariado é uma troca de conhecimento que a agência vai dar, mas que com certeza está a ganhar do voluntário. Temos uma procura muito grande de pessoas que passaram pelo Abrigo e que agora querem voltar para retribuir e ajudar. Já tivemos programas com 100 ou 110 voluntários por ano que doam cerca de 14 mil a 15 mil horas por ano. No último ano por causa da pandemia, infelizmente, tivemos que fazer mudanças, mas mesmo assim tivemos cerca de 45 voluntários que foram treinados e direcionados para as áreas onde precisávamos, como fazer telefonemas aos nossos clientes para saber se estavam bem ou se precisavam de alguma coisa porque nós, conselheiros, não estávamos a conseguir chegar a todos. Esses voluntários ainda continuam a fazer esses telefonemas de bem-estar pelo menos uma vez por semana. Claro que houve quem ligasse para o centro, mas não foram muitos.

RA: E antes da pandemia, qual era a função dos voluntários?
VS: Ajudavam-nos no preenchimento de formulários, que hoje é feito por telefone porque as pessoas continuam a precisar de ajuda para pedir os seus benefícios seja a reforma, o subsídio de desemprego, benefícios dentários etc.. Infelizmente, tivemos que suspender o preenchimento do formulário da renovação do cartão de residente permanente. Os voluntários também dão apoiam à coordenadora, Marília dos Santos, do programa de idosos, à Rosie na receção, no programa Sucesso às 6, ficam a tomar conta das crianças enquanto as mães estão a ser atendidas pelas conselheiras. Estamos sempre a precisar desse apoio em várias áreas e programas dentro do centro.

RA: O que é o Programa de Desenvolvimento e Integração Comunitária?
VS: Este programa está ligado a serviços na parte dos benefícios como a reforma; as pensões (viuvez, invalidez, etc); os subsídios (desemprego, funeral); cidadania canadiana e passaporte canadiano; abono de família; orientação a recém-chegados; etc..

RA: E todos os vossos serviços são confidenciais?
VS: Sim, todos!

RA: Durante estes, aproximadamente, 19 meses têm ajudado dentro do possível por telefone, contudo agora que os governos, federal e provincial, já levantaram mais algumas restrições, quando pensam reabrir?
VS: Estamos quase, quase lá (sorriso)… neste momento e por incrível que pareça, nós estamos a trabalhar em todos os nossos serviços por telefone ou virtualmente. Vamos começar um processo, no qual temos vindo a trabalhar num planejamento que seja seguro para todos – para nós, mas principalmente para os clientes. O processo consiste em fazer marcações e seguir todas as regrar de segurança.

RA: A pandemia, também afeto os vossos eventos beneficiários de angariação de fundos, como a vossa Gala Anual. O que têm feito para minimizar os efeitos dessa perda?
VS: É assim, nós perdemos dois grandes eventos que complementam o suporte dos nossos serviços, que são todos gratuitos. É obvio que temos ajudas dos três níveis do governo e da United Way que nos permite fazer esta campanha e que nos ajuda muito, mas mesmo assim nós precisamos completar. Esses dois eventos, que infelizmente tivéssemos que cancelar, fizeram muita falta para podermos ter, por exemplo, o programa da 3ª. idade, o programa dos jovens e o programa das mulheres a quem já abrimos as nossas portas há 31 anos porque sofriam de abuso e precisavam algum tipo de ajuda. Sei que o diretor executivo, Ed Graça e o gerente de angariação de fundos e comunicação, Gerry Luciano, são pessoas que arregaçam as mangas e que têm trabalhado muito, mas eles são as pessoas certas para falar mais sobre este assunto.

RA: Quem é que pode pedir ajuda ao centro?
VS: O Centro Abrigo está aberto a toda a gente do Ontário! Não importa o estatuto emigratório em que se encontra, estamos abertos de segunda a sexta-feira das 9h às 17h, por enquanto só por telefone, temos programas abertos para voluntários, temos workshops, programas para pais e filhos, etc.

RA: Gostaria de a convidar a deixar uma mensagem à comunidade.
VS: A minha mensagem para a comunidade é simples… se precisar de ajuda ou de uma informação, ligue para o centro que nós vamos ajudar no que for preciso. O Centro Abrigo é como um elo entre o governo – que tem tantos créditos, ajudas e benefícios disponíveis para a comunidade – e o individuo que precisa… e nós estamos prontos para ajudar, basta ligar-nos!

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