Keila Martins
Entrevistas

Keila Martins

 

Keila Martins Photo by Mike Neal for AMAR

 

Keila Martins tem 16 anos. Tem tudo o que uma jovem com esta idade tem – sonhos, desejos, ilusões, mas tem também um olhar para a vida e para os outros muito pouco comum. Keila nasceu em Toronto, mas tem as suas raízes bem firmes no concelho de Vila Verde, Braga. A ligação a Portugal é realmente profunda. Vai lá com bastante frequência, gosta de rever a muita família que lá vive e é apaixonada pelas tradições portuguesas. A dança ao som do rico folclore minhoto, no Rancho da Associação Migrante de Barcelos, em Toronto, é uma prática que mantém viva ainda hoje, lutando contra um destino que parecia marcado, quando uma doença rara a deixou sem conseguir andar, durante mais de um ano. Keila tem um coração gigante e o olhar de quem se preocupa com o que se passa à sua volta. Detesta injustiças, mas não deixa de lutar por aquilo em que acredita, mesmo que muitos outros achem que, sendo a injustiça uma inevitabilidade no mundo, não tem solução e por isso abanam os ombros e nada fazem.  

Todos os anos, esta menina que ajuda o padre na missa e quem a vê no altar diz que tem qualquer coisa de diferente, consegue centralizar em si um movimento de solidariedade que tem como missão melhorar o Natal de crianças, que vivem em países bem distantes e bem pobres. As caixinhas levam dentro delas pequenos sinais de luz e de esperança numa vida e num mundo melhor. Com certeza que ajudam a abrir sorrisos nos rostos de quem nada tem e deixam também Keila mais feliz por ser o veículo dessa mensagem de amor pelo próximo.

Nesta quadra de Natal, trazemos a história de vida ainda curta de uma menina que já tem tanto para nos ensinar com o seu exemplo. Uma menina que sabe bem o que quer fazer no futuro: “ser uma advogada que faça uma diferença grande no mundo”.

 

Keila Martins - AMAR

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A importância de crescer num ambiente onde o cuidar sem olhar a quem é uma prática de vida. E como há sempre boas lições para aprender, mesmo nos momentos mais difíceis.

Desde quando é que te vem esta vontade de fazer alguma coisa pelos outros?
Desde muito pequena, sempre fui assim. A verdade é que também vivi sempre neste ambiente de ajudar os outros. Quando eu tinha por volta de três anos, os meus pais e alguns amigos juntavam-se para preparar comida para os pobres na nossa comunidade e, desde aí, sempre me deu vontade de fazer estas coisas. Nessa altura, todos juntos na garagem dos nossos amigos fazíamos comida e distribuíamos depois as refeições já prontas. 

Tanto quanto sei, tinhas também uma ligação próxima à igreja, não é?
Sim, sim. Ainda hoje tenho uma ligação grande, ajudo o padre no altar e faço tudo o que for preciso para ajudar quando eles precisam, agora também ajudo a fazer as festas e tudo. Faço parte da Irmandade do Divino Espírito Santo na nossa igreja e ajudo sempre que posso.

Tu tiveste um período difícil da tua vida, por razões de saúde. Podes contar-nos o que é que se passou com a tua anca, por que razão estiveste um ano sem andar? 

Tive muitas dores na anca e nós fomos ao médico porque não estava a conseguir andar e estava mesmo com muitas dores e, depois de vários exames, os médicos disseram que eu tinha uma doença muito rara que se chama Legg Perthes Disease. O que acontece nesta doença é que o osso da anca morre, porque não tem irrigação de sangue e eu não conseguia andar. Só com tratamento é que é possível fazer com que o osso volte a ter sangue e, portanto, volte a funcionar. Então estive um ano sem conseguir andar e depois levemente, com o tempo, consegui andar um bocadinho até que o médico me deu alta. Foi quando eu fiquei bem.

Nunca mais tiveste problemas?
Dá-me dores às vezes ainda, mas problemas de andar nunca mais tive.

Como é que foi esse período de um ano sem poderes andar?
Foi um dos piores tempos da minha vida. As crianças na escola faziam pouco de mim e diziam coisas que não eram verdade. Chamavam-me preguiçosa porque eu não queria andar e porque eles não entendiam o que estava a acontecer. Porque por fora parecia que eu tinha nada. Eu não tinha nada na perna, não se via nada por fora, mas por dentro eram umas dores que não tem explicação. Foi muito duro. 

Quando eras criança, aconteceu uma história com uma menina que estava doente com leucemia… podes contar-nos o que se passou?
Eu tinha mais ou menos oito anos e tinha ouvido que esta criança na minha comunidade tinha um cancro e queria ajudá-la. Não sei porquê, só sei que queria muito ajudar a menina que eu nem conhecia. Naquele fim de semana, nós estávamos para ir a Niagara Falls e eu, no dia anterior, decidi que queria ajudá-la e queria fazer limonada para vender e arranjar dinheiro para ajudar a menina. No sábado, no dia que éramos para ir, eu e a minha mãe fomos comprar limões e tudo mais que era necessário para fazer limonada. O meu pai arranjou tudo para eu poder vender, o meu irmão fez um cartaz a dizer o que estávamos a fazer e vendi a limonada. Quando os carros passavam na nossa rua, eu gritava para virem ajudar a minha amiga que tinha um cancro e as pessoas quando ouviam que a menina tinha cancro, vinham, chegavam a dar a volta para comprar a limonada. E naquele dia, passado a vender limonada, fiz 600 dólares para esta menina.

Mas para além de teres crescido nesse ambiente muito virado para a ajuda ao próximo, graças à influência dos teus pais e amigos próximos, e também influência da Igreja, com certeza… para além disso, tu sentes que fazer esse tipo de coisas é uma necessidade? O que te acrescenta enquanto pessoa e que sentimento te traz este tipo de ações?
Traz-me um amor por todos no mundo, um carinho que eu tenho para todos. Sabes, eu sinto que todos também merecem ter o que nós temos e eles, coitados, não têm a possibilidade de conseguir ter. Então, nós que temos, damos-lhes para os ajudar um bocado e trazer-lhes um bocado de alegria também.

Tu tens noção de que és apenas uma pequena peça neste mundo que é tão injusto, isso perturba-te?
Não. Porque eu sei que posso só ser a tal pequena peça, posso fazer só um bocadinho, mas esse bocadinho que faço já ajuda alguém e já traz alegria a alguém. Não posso ajudar todos no mundo, mas posso ajudar uma ou duas pessoas. Isso já me traz alegria. Saber que, pelo menos, ajudei alguém.

 

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As caixinhas de Natal

Nesta fase do ano tu estás particularmente ocupada. Segundo sei, tu tens uma atividade solidária, nesta altura do Natal, já há uns anos. Queres contar-nos o que é que fazes nesta quadra natalícia.
Nesta altura de Natal, eu com a minha mãe, nós começámos a fazer caixinhas para enviarmos para meninos e meninas, que vivem em países mais pobres. No fim de contas, a ideia é levarmos até eles o espírito do Natal. São crianças que não têm mesmo nada e nós arranjamos maneira de lhes oferecer uma prenda, para eles terem alguma coisa. 

Mas como é que tu chegaste a isso? Como é que mandas as caixas? Quais são as entidades com que te relacionas? Porque eu sei que não és só tu e a tua mãe, vocês agora já têm uma rede de pessoas que vos ajudam, não é verdade?
Isto começou já há seis anos, uns amigos nossos falaram-nos desta organização, que faz estas coisas e nós ficámos muito interessadas e quisemos participar. Eu acho que, na altura, pensámos encher três ou quatro caixinhas para os meninos, mas quando fomos comprar as coisas, comprámos a mais e fizemos cinco. A partir daí começámos a fazer as caixas para os meninos e nunca mais parámos de fazer. Fazemos todos os anos. Este ano queremos fazer, pelo menos, 85 caixas. Mas o mérito não é só meu e da minha mãe, o mérito é de todos os que nos ajudam, nem sei ao certo quantas pessoas são, mas todos ajudam, todos fazem caixas.

Mas a verdade é que tu conseguiste cativar outras pessoas para fazerem este tipo de coisas.
Sim, nós conseguimos a mostrar-lhes o que é que esta organização faz e explicar-lhes o que é que nós fazemos, para quem são as caixas e o que estas caixas fazem na vida daquelas crianças. E, por isso, as pessoas começaram a querer fazer também e fazem.

Os teus colegas de escola sabem que fazes este tipo de trabalho? Tu conversas com eles sobre este tipo de coisas que fazes?
Não falo muito sobre estas coisas, mas já tenho falado e não sei como é que eles se sentem depois de eu falar. Acho que abro algo dentro deles. Acho que eles ficam com o olho aberto e a pensar que se calhar também podiam fazer alguma coisa para ajudar quem precisa, mas nunca pedi a nenhum colega para fazer uma caixa.

Tens noção que tu, com este tipo de personalidade e aquilo que fazes de entrega aos outros, és diferente relativamente à maior parte dos teus colegas?
Eu não me acho nem melhor, nem pior que eles só porque eu faço as caixas. Eu sei que eu gosto de as fazer, mas não é por eu gostar de as fazer que sou mais que eles. Isto é apenas uma coisa que eu gosto de fazer – ajudar os outros. Eles também, se quiserem, podem fazer algo. 

Como é que isto se faz? Como posso participar se estiver interessada em ajudar?
Pode contactar comigo ou com a minha mãe ou pode ter mesmo contacto direto com a organização e eles mandam-lhe as caixas e depois a Madalena, enche-as e envia-as diretamente.

As pessoas que te estão a ajudar este ano, a fazer as tais 85 caixas que tu vais mandar, são pessoas com quem te relacionas?
Na maioria são pessoas que me conhecem, mas há outros que conhecem a minha mãe e a minha mãe falou com eles sobre esta ação solidária e eles decidiram ajudar. Às vezes, as pessoas decidem fazer as caixas nas suas casas, mas há outras que optam por fazer donativos e, depois, nós fazemos as caixas.

Nesta altura do Natal as pessoas estão mais sensíveis para este tipo de dádivas, não é? Sentes que o Natal devia ser todos os dias nesta perspetiva de estarmos mais atentos aos outros?
Sim, claro. Não devíamos pensar só no Natal em dar aos outros, porque as pessoas têm necessidades ao longo de todo o ano. Nós devíamos estar sempre abertos para dar. Não é só agora.

 

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Quando for grande quero ser…
Keila Martins há muito que sabe exatamente o que quer do seu futuro.

Eu sei que tu já tens uma ideia muito concreta do que queres fazer da tua vida futura. Queres falar-nos um bocadinho disso, sobre o teu objetivo de vida profissional?
O meu objetivo é seguir a área da justiça, ser uma advogada, porque há muita injustiça no mundo. Eu acho que se cada um de nós conseguir fazer a sua parte o mundo pode tornar-se melhor. 

Portanto, a tua perspetiva de vida profissional está também relacionada com essa tua necessidade de ajudar os outros?
Sim! Eu quero seguir os estudos para conseguir para defender quem precisa, muito em especial aqueles que ficam aleijados, quando alguma coisa acontece.

Esse teu objetivo faz com que agarres os estudos com muita força de vontade? Para cumprires esse sonho?
Sim, sim. Eu sempre fui de estudar muito, mas estes objetivos ajudam-me a fazer tudo para que possa conseguir isto. Quero estudar mais e conseguir bons resultados.

 

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A dança, o folclore e Portugal sempre no coração

Para além da vida de estudo e esta ação das caixas que acontece mais nesta altura do ano, no resto do ano, o que é que tu gostas de fazer?
No resto do ano é mais sempre ajudar na igreja e a fazer o que eu posso quando eles me pedem para ajudar. 

Não tens outra atividade que gostes de fazer?
Eu danço. Eu sou uma dançarina do Rancho da Associação Migrante de Barcelos.

Vamos falar então desse teu lado de proximidade com a cultura portuguesa, com as nossas tradições. Temos aqui, de novo, influência dos teus pais?
Não, não, os meus pais não dançam. O meu irmão também nunca dançou. Isto é mesmo porque eu sempre quis. Eu sempre gostei de ranchos e eles levavam-me para ir ver ranchos e com o tempo eu decidi que queria dançar também. E agora danço.

E o que é que te traz aquela música minhota? O que é que te faz vibrar?
É uma alegria. Não tem explicação. É um amor que eu tenho pela dança e pela minha cultura, eu adoro as nossas músicas. Adoro dançar.

Essa tua vontade de dançar acaba por se tornar ainda mais interessante depois sabermos os problemas que tiveste com a anca e depois de teres deixado de andar. Dá a impressão que encontraste na dança uma espécie de libertação…
Esse tempo foi mesmo muito difícil. Foi também nessa altura que eu queria começar a dançar e não podia. Então, anos depois, depois de já ter alta e depois da COVID, quando voltei à minha vida normal foi quando comecei no rancho e, desde aí, nunca mais parei de dançar.

Tu falas muito bem português, tens essa ligação à música e tradições portuguesas. Vais a Portugal com alguma frequência?
Sim, sim. Todos os anos nós vamos a Portugal, de férias. Nós somos de Braga, mais concretamente de Vila Verde e vamos lá ver a nossa família, sempre. Temos lá muita família.

Com essa ligação a Portugal, com essas idas tão frequentes ao nosso país, nunca te passou pela ideia um dia ires viver para Portugal?
Quando era mais pequena, sim, mas agora já não queria ir.

Porque são realidades muito diferentes?
Sim, sim, é uma diferença muito grande. E, agora, aqui tenho os meus amigos por isso… só para férias. Para ver a minha família, sempre.

 

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Lutar por um mundo melhor, menos injusto – uma utopia consciente

Relativamente a situações no mundo. Se pudesses, o que tentarias resolver?
É que há muitos países que deviam ajudar os seus habitantes mais pobres e não querem saber. Deixam as pessoas a viver na pobreza extrema e deixam as pessoas morrerem à fome e com doenças porque não têm acesso a cuidados de saúde. Porque, na realidade, quem manda não quer ajudar o seu país, apesar de terem a possibilidade de ajudar.

Nós vivemos num país rico, está no grupo dos mais ricos do mundo. E, no entanto, nós vemos o que se passa nas ruas de Toronto e não só. Não é preciso caminhar muito para encontrarmos muita pobreza. O que pensas sobre isto?
Eu acho que devia haver mais apoios para essas pessoas. Essas pessoas estão nos sítios que estão porque não têm sítio para viver. A comida está muito cara para eles poderem ir comprar alguma coisa. Eles não conseguem arranjar trabalho, porque não há e por isso digo que devia haver mais apoios para essas pessoas, porque não há suficientes.

Há uma indiferença geral da sociedade, às vezes passamos em ruas onde vemos tanta miséria e continuamos a nossa vida. Como é que tu achas que isto poderia ser combatido? Por exemplo, mais Keila’s, mais pessoas da tua idade com essa maneira de ver o mundo poderiam ajudar a transformar a sociedade?
Precisamos de falar mais destas coisas, do que podemos também nós fazer para ajudar, o que podemos fazer para mais pessoas verem o que se passa na realidade. Depois acho que devia haver mais organizações, como esta que está por detrás do envio das caixas de Natal, para abrir os olhos a muita gente que não sabe o que se passa no mundo, porque muitas pessoas não sabem que se passa, quer seja longe do nosso país, quer seja aqui bem ao nosso lado. O problema é que muitas pessoas têm medo de fazer donativos a certas organizações, porque muitas dizem que vão ajudar, mas não vão e as pessoas ficam com medo. Devia haver mais organizações em que a gente possa acreditar, para as pessoas verem que não são só organizações a querer dinheiro, mas são instituições que querem mesmo ajudar quem precisa? É preciso que toda gente recupere a confiança que os faça acreditar que fazendo um donativo estão realmente a ajudar quem mais precisa. Se isso acontecer vai haver muito mais gente a querer ajudar.

Tu já ajudaste tantas crianças ao longo destes anos… tens vontade de ir conhecer o sítio onde elas vivem?
Tenho muita vontade. Eu gostava de ir um dia, agora ainda não posso, mas um dia gostava de ir ver e não só, ir ajudar.

Esse trabalho quase de “missionário”, seria algo que tu gostavas de fazer?
Podia ser, não sei, mas podia ser um trabalho que gostasse. Ver esses países e ver a alegria nas caras dessas crianças quando recebem as caixas…

 

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Mais do que um sonho, um objetivo!

Nós já aqui falámos de muitos objetivos de vida e muitos sonhos, mas para terminar a conversa… se eu te pedisse para tu me dizeres qual é o teu maior sonho na tua vida pessoal, o que é que tu me dirias? O que é que gostavas muito que acontecesse na tua vida no futuro?
Eu gostava muito de conseguir a carreira que eu quero – ser uma advogada que faça uma diferença grande no mundo.

Entrevista: Madalena Balça | Fotos: Mike Neal / Família Martins

 

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