Manuel Laureano de Sá Meira
Manuel Laureano de Sá Meira nasceu a 19 de Janeiro de 1956, na parte interior do castelo, na freguesia de Castelo do Neiva, Viana do Castelo. Nasceu em casa, como era normal na época. A família era numerosa, ao todo eram oito irmãos, todos pescadores.
Manuel Laureano ainda só tinha 13 anos e também já trocava os dias pelas noites, no barco de pesca de um dos irmãos. Aos 19 largou a pesca – “aquilo não era para mim”, mas fez-se ao mar alto em navios da marinha mercante.
Ao sabor das águas, viu o mundo e sentiu na pele o que é viver longe da terra e da família. Até que vários fatores se conjugaram e indicaram ao recém-casado e pai, Manuel Laureano, um novo rumo para a sua vida. Emigrou. O Canadá já estava na sua mente desde o dia em que, ainda nos navios, conheceu uma terra que o encantou – “um dia hei-de vir para este país”. E veio. Agarrou o desafio de um conterrâneo e o Canadá passou a ser casa e os telhados modo de vida e de sustento da família.
Roofer há mais de 36 anos, trabalho duro que abraçou desde a primeira hora e a que nunca virou costas, Manuel Laureano está agora à porta do merecido descanso, ou seja, da reforma e isso, para ele, significa o retorno às origens. Quando sair de Toronto para Castelo Do Neiva será de vez, porque tem muito que fazer em Portugal. As raízes que ainda o ligam ao Canadá serão cortadas, embora o regresso pontual a este país que o acolheu, esteja sempre no horizonte.
O mar, a pesca e a marinha mercante
O mar, a pesca e a marinha mercante marcaram grande parte da vida Manuel Laureano. O mar que liga e separa, o mar que se enfrenta para mudar de vida e de país. O mar que sobrevoou na viagem que o trouxe para o Canadá, “para ver como era”, transformando o rumo da sua vida até hoje.
Que memórias tem dos seus tempos de infância e juventude em Castelo do Neiva?
O meu irmão mais velho tinha um barco de pesca. Eu fui trabalhar com ele aos 13 anos. Na realidade, eu ainda não podia trabalhar, só aos 14. Eu gostava da pesca e, na altura, o dinheiro que a pesca dava era relativamente bom, em relação ao que se ganhava em terra. Mas também cedo vi que aquilo não era bem para mim, porque era trabalhar de noite e dormir de dia e não se enquadrava com o meu sistema. E foi por isso que eu decidi e saí da pesca.
E fez o quê depois?
Aos 19 anos fui para Lisboa tirar um curso na Marinha Mercante. Ao fim de um ano embarquei numa viagem da Companhia Nacional de Navegação. Tinha sede em Alcântara e andei lá dez anos. Após a revolução, o meu “amigo” Mário Soares extinguiu essa e outras empresas e mandou 6000 pessoas para a rua. Depois disso optei por trabalhar numa empresa americana de navegação, também. Trabalhei três anos nessa empresa. Até que essa empresa americana decidiu que o navio onde eu andava, ia mudar toda a tripulação para filipinos. E foi aí que eu decidi acabar com a vida do mar e emigrar para o Canadá.
Esses anos de marinha mercante deram-lhe mundo, o senhor conheceu o mundo, no fim de contas?
Conheci parte do mundo. Não conheci o mundo todo, mas…
Mas isso não o impediu de constituir a sua família…
Casei aos 24 anos e deixei a Marinha Mercante aos 32. Por isso andei oito anos embarcado após o casamento. Não posso dizer que foi, ou que era uma vida má.
Essa experiência, esse andar pelo mundo facilitou quando o senhor decidiu sair de Portugal para outro país, para viver e trabalhar?
Ganha-se outra bagagem? Quem decide fazer esse tipo de vida ganha outro tipo de bagagem que uma pessoa que nunca sai, é claro, porque não vive este tipo de experiências se tiver no sofá, sentado. Porque quando você vai, por exemplo, para a África, para países da África, como eu andei e muitas vezes éramos proibidos de ir para terra por causa do perigo de répteis e não só. Por isso, se me perguntasse se gostei de viajar para a Europa, eu respondia-lhe: é claro que gostei. É uma vida completamente diferente. Mas é bom para quem é novo. Hoje estás em Nova Iorque e daqui quatro ou cinco dias, estás em Montreal, no Canadá. Daqui a 8 dias vais para trás e estás nas Bahamas. Eu andei aqui três anos a fazer esse trabalho. Assim é bom, não é? E passa-se o tempo. Se andares em percursos curtos, que foi o meu caso, que andei percursos curtos aqui na América – fazíamos Barbados, Santa Lúcia, São Vicente, Jamaica. Guadalupe… fazíamos aquelas ilhas pequenas, todas. Vínhamos buscar cereal aqui à América e levávamos cereal para lá. De lá trazíamos sal das Bahamas para o Canadá.
E qual era a sua função no barco?
Eu cheguei ao posto máximo. Eu era marinheiro. O marinheiro é que faz a manutenção do navio e faz turnos na ponte de comando. Eu fazia isso, mas cheguei a contramestre. Contramestre era a pessoa que mandava nos marinheiros. Cheguei ao máximo. E acabei por sair. Foi quando emigrei para o Canadá. Não foi por questões económicas. Foi por escolha. Por querer mudar de vida e de país. Porque na altura que eu emigrei, nos primeiros anos que eu estive aqui, eu ganhava menos que ganhava na marinha mercante. Mas pronto, foi uma mudança de vida que eu quis fazer.
E tem memórias de tempestades, de mau tempo no mar, ao ponto de pedir ajuda divina?
No fundo, nunca vi tempestades. Nunca me vi numa situação de sentir medo, medo da morte por causa do mar. Tenho mais receio de voar do que de navegar. O mar dá-me mais segurança.
Voltando à sua história de vida… depois da substituição da tripulação no navio da tal companhia norte-americana, o Sr. Laureano decidiu emigrar. E decidiu logo vir para o Canadá? Como é que foi este processo?
Eu decidi vir para o Canadá, quando fiz uma viagem num navio dessa empresa americana. Subi os Grandes Lagos, ou seja, viemos, passámos em Montreal e subimos ao grande lago. Fomos a uma cidade que fica na esquina do lago superior. E pronto. Ao subir as comportas, eu disse assim – um dia hei-de vir para este país e vim. Demorou para aí um ano e pouco. Tinha aqui colegas meus, de infância. E, uma vez estava na praia do Castelo a olhar para o mar e um amigo meu disse: “eh pá! Deixa o mar e vem até ao Canadá, ver aquilo. Pode ser que gostes. Se não gostares não ficas lá”. E foi assim. Vim. Estive aqui dois anos ilegal. Depois saiu uma lei a dizer que quem estivesse ilegal podia sair do país e ao voltar eles davam os papeis de imigração. E eu fui dos primeiros a ir. Fui em dezembro. Tinha lá a mulher e a filha, fui passar o Natal com elas e vim em maio. A minha esposa e a minha filha vieram para aqui comigo, mas a minha filha, teve um problema de saúde. Já tinha e agravou quando chegou aqui e eu decidi mandá-la para Portugal. Fez os cursos dela em Portugal e agora é lá professora de ensino secundário. Pronto, tem a vida dela, e também me toma conta do que eu tenho lá, não é? A minha mulher também esteve com a minha filha até ao fim do curso. Quando a minha filha se formou, foi dar aulas para o Algarve e eu estava aqui e a minha mulher estava em Castelo do Neiva. Estávamos cada um em cada lado, não é? Então, nós decidimos que estava na altura de a minha mulher vir para aqui.
A vida e as transformações a que obriga
Manuel Laureano é um homem que cedo percebeu que o ser humano tem muito de camaleónico. Transforma-se para se adaptar às novas situações que a vida lhe vai apresentando. No seu caso, as escolhas de vida levaram-no a vários processos de adaptação. Sempre necessários porque “se não, nunca vais dar passo nenhum”.
Nesses dois anos em que esteve aqui, ilegal ainda, com a sua mulher e a sua filha em Portugal. Foram anos difíceis para si. Como foi a adaptação ao país?
Nós somos como o camaleão, temos que nos adaptar às situações. Se não te adaptas, não podes dar o passo, nem nunca vais dar passo nenhum. Se te adaptas, tudo bem.
Para além de sentir falta da família propriamente, o que é que lhe fazia falta de Portugal?
Como eu “emigrei” no sentido da palavra aos 19 anos, era muito novo para dizer assim “faz-me falta isto ou aquilo”. Aqui não me faz falta nada de Portugal, a única coisa era a família. Não é porque aqui eu aqui tinha tudo, podia adquirir tudo de que eu pudesse ter saudades de Portugal. Agora a única saudade, claro que é a família, são escolhas que a gente faz e se olhares para trás e perguntares: “farias alguma coisa diferente?”. É muito difícil dizer que sim ou não. Muito, muito difícil, porque efetivamente tu nunca sabes, nunca vais saber se deste o passo mais certo da tua vida ou se deste o mais errado. A única coisa que podes saber é se te sentes bem ou não te sentes bem com o que fizeste. Eu pessoalmente sinto-me bem com aquilo que fiz. Agora, se foi o melhor ou pior, isso já não sei.
Mas foi fácil a adaptação?
Foi fácil porque eu já vinha de uma vida de trabalho e, ao chegar aqui, comecei logo a trabalhar. E não foi fácil. Era mais difícil quando eu vim, do que agora. E comecei a trabalhar num ramo que não escolhi. Na altura, esse meu colega trabalhava no roof e foi ele que me deu a mão. Onde é que ele ia arranjar para eu trabalhar? No roof, claro. Num ano, trabalhei primeiro em três empresas, e depois vim para a Viana Roofing e aqui fiquei.
Do mar para os telhados
Não escolheu trabalhar nas alturas, mas foi esse trabalho que lhe caiu no colo há 37 anos e que agarrou como modo de vida. Até hoje. E para Manuel Laureano, nada custa se se conseguir ativar o poder da mente – “se te mentalizares… não há trabalho que seja duro”.
Ficou até agora. Ainda é trabalhador da Viana, mas Sr. Laureano, esta é uma vida muito dura. De todas as profissões que teve, esta é a mais dura?
Se te mentalizares que quando fores para a cama tens que dormir só de um lado, vais para a cama, mentalizas-te que é só daquele lado que vais dormir e assim dormes. Se tu te mentalizares que é isto que queres fazer… não há nenhum trabalho, seja qual ele for, nem da construção, que seja duro, quando estás mentalizado para o fazer. Ora, se tu te mentalizas que não és capaz e que é duro para ti, estás no sítio enganado. Eu vi muita gente que tinha tão bons corpos como eu e, pronto, não conseguiram. Mas o problema é a mentalidade, não é de esforço. Porque o esforço físico… os nossos corpos vão-se adaptando ao esforço físico que a gente faz.
O que é que é mais difícil aqui no trabalho do roofing?
Bom, como “labour”? É a adaptação. Como encarregado que eu fui, é saber lidar com as pessoas. Muito difícil. E cada vez mais. Cada vez vai ser pior para os que trabalham nesta área, não para mim porque eu estou no término de vida profissional. Vai ser pior para eles, porque se exige mais de quem está à frente e menos de quem está atrás. Se tu vens num dia mau e às vezes te excedes na linguagem, começam logo a dizer que és tudo e mais alguma coisa. Eu não estou a falar isto por experiência própria, por ter tido problemas com empregados, porque não tive. Estou a falar por aquilo que vou vendo.
Mas como “labour”, como disse, o que é realmente mais difícil? Suportar as temperaturas, sejam de muito frio, sejam de muito calor?
No que diz respeito a este trabalho, isso é, de facto, das coisas mais difíceis de suportar. Estamos agora aqui com esta temperatura (estava calor…) e para quem está a trabalhar, está a ser brutal. E não tem como fugir dela. Nós ainda temos. Vamos sair daqui e vamos para a sombra, mas eles não têm como fugir porque eles têm que fechar isto que aqui está, atrás de nós. Isto, às vezes, é muito complicado. E com este material que eles estão a usar, ainda mais complicado se torna porque têm que usar óculos. É obrigatório? Porque este trabalho fere a vista. É duro.
Não é um trabalho fácil. Mas depois de todos estes anos de trabalho, quando olha para trás agora, dá para ter saudades de tudo o que por aqui viveu?
Claro que dá para ter saudades, mas isso são coisas que nós, o tal camaleão, não é, temos que nos adaptar ao sistema. Foi o meu caso. Eu trabalhei até dezembro, já estava com problemas no meu ombro, mas agora a coisa tem piorado e eu não vou dar cabo do resto, não é? Pois… tenho que me adaptar. Em casa tenho que me adaptar ao sistema. Claro, tenho mais saudades da camaradagem do que propriamente do trabalho (risos).
Fazem-se bons amigos neste tipo de trabalho?
Eu tenho alguns.
Aprender a fazer este trabalho também não deve ter sido por uma coisa que se aprende assim de um momento para o outro, que exige algum conhecimento técnico, não é?
Pois, exige muito. Também exige muita paciência para quem está à frente e tem que ensinar e exige vontade de quem tem que aprender. Se tu não tiveres vontade de aprender, esquece. Nunca vais aprender nada porque estás contra a vontade, não é? Às vezes, chega uma pessoa e ao fim de seis, quatro ou cinco meses, já está mais apto do que outro que está ali há três anos, porque está aqui por causa do cheque de que precisa para pagar as contas semanais. O outro que vem com vontade, se calhar de ficar no ramo, tem a cabeça mais aberta e tem mais tendência a aprender rapidamente. Porque isto não é só chegar aqui e já está. Tem muito que se lhe diga, porque nós estamos a tratar de isolar tetos da água. A água é muito fininha, a água entra em qualquer sítio, não é? É muito complicado. O importante é que, por exemplo neste trabalho onde estamos, quando eles chegarem àquela ponta e o trabalho estiver pronto, o importante é que daqui a dois ou três anos eles se esqueçam que fizeram este trabalho. É muito bom, porque isso é sinal de que não o trabalho foi bem feito, não houve qualquer problema. Porque quando tu não te esqueces, e estás sempre a lembrar-te que tens um trabalho acolá, isso é muito mau sinal. É sinal de que o trabalho deixou algum problema. Mas atenção, lá por ter coisas não quer dizer que é culpa nossa, muitas vezes acontece sem culpa nossa. Mas acontece. Nesta empresa e acontece nas outras. Quem tem uma empresa destas e diz que não tem problemas com nenhum trabalho ou está a ser arrogante, ou não está a saber do que é que está a falar, ou não está a dizer a verdade.
Tempo de passar à reforma – e agora?…
É uma transição que até pode ser muito desejada, mas quando chega à hora da verdade, nem sempre é fácil. Principalmente, quando a vida de trabalho foi intensa. Mas para Manuel Laureano não parece ser bem assim – “se tu não estiveres a fazer nada, adaptas-te sempre”.
O senhor está à beira de passar para uma outra fase da sua vida. Vai reformar-se. E agora? Vai bater asas e vai regressar ao ninho? Vai regressar a Castelo do Neiva?
Em princípio, estou com a intenção disso.
E acha que se vai adaptar a essa vida de reformado?
Se tu não estiveres a fazer nada, adaptas-te sempre. Se tu estiveres estável financeiramente, não tens problemas em estar em lado nenhum, não é? Se tu não estiveres estável financeiramente, tens problemas em qualquer lado. Tanto pode ser no Canadá, como em Portugal.
Nestes 36 anos de roofer nunca pensou abandonar este trabalho e ir para uma outra área?
Nunca fiz o que fiz, por exemplo, com a pesca. Pesca? Nunca mais. E depois à marinha mercante também disse “não, isto não é para mim, isto é bom para quem é novo”.
Sonhos, só mesmo quando se está a dormir…
No mar, na terra, nos cimos dos telhados desta vida, Manuel Laureano marcou sempre a sua caminhada, com passos seguros e pensamentos muito realistas. Sonhos, só mesmo quando está a dormir. Porque acordado… “nunca fui uma pessoa muito sonhadora”.
Se eu lhe perguntasse se o senhor tem algum sonho que nunca concretizou e que gostasse ainda de concretizar, o que é que me diria?
Eu nunca fui pessoa muito sonhadora. Viagens não, porque já viajei muito e também não sou de grandes carros. Sonhei sempre ter uma casa aqui e outra casa em Portugal, e isso sim, tenho. Tenho aqui uma, tenho duas em Portugal e tenho mais uns bens.
E como reformado, vai andar cá e lá, como fazem tantos outros portugueses que viveram e trabalharam no Canadá?
Não. Quando eu decidir ir de vez, é para ir de vez. Eu lá tenho muito que fazer.
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