Violante Saramago Matos
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Violante Saramago Matos

violante saramago matos0 - revista amar
Créditos © Nuno Botelho

Notas biográficas

  • Nasceu em Lisboa em 1947 e vive no Funchal desde 1980.
  • Licenciou-se em Biologia e foi professora do ensino secundário e técnica de controlo laboratorial de alimentos.
  • Ativista e dirigente da luta estudantil contra a ditadura e a guerra colonial, foi presa no 1º de maio de 1973, tendo cumprido 3 meses na prisão de Caxias, de onde saiu sem culpa formada. Depois de 1974, continuou a assumir intervenção política – partidária e cívica.
  • Deputada à Assembleia Legislativa da Madeira entre 1966 e 2000 e em 2006.
  • Entre 1997 e 2001, vereadora na Câmara Municipal do Funchal.
  • Mandatária regional da candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República, em 2010.
  • Mandatária regional da candidatura de Sampaio da Nóvoa à Presidência da República, em 2015.
  • Mandatária de Miguel Gouveia na candidatura à Câmara Municipal do Funchal, em 2021
  • Desde janeiro de 2020, integra o painel do programa ‘Mulheres com Palavra’ na TSF-Madeira

Para além de diversas exposições de pintura, individuais e coletivas, publica:

  • 2010, “Na Primeira Pessoa”
  • 2012, “A História Num Instante – Madeira, 20 de Fevereiro de 2010”
  • 2020, “Quando o Verão Amadurece” (crónicas)
  • 2021, “Escritas da Pandemia com caneta e pincel” (crónicas)
  • 2022, “De Memórias Nos Fazemos”

Para crianças,

  • publica em 2011, “Quinas Ganha Uma Casa”
  • em 2015, “Quinas à Descoberta”,
  • em 2017, “Quinas e Uma Companheira de Brincadeiras” e “Quinas e Uma Rainha Sem Coroa”,
  • em 2018, “Quinas Pelo Mar Fora…”
  • em 2019, “Quinas e Uma Viagem à Ria”.

Em 2020, “Pintas e Pirata – Detetives de Pata Cheia” – uma abordagem, para jovens, dos tempos do Estado Novo.

 

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Créditos © Júlio Acevedo

 

 

Revista Amar: Ao consultar o programa das Comemorações do Centenário do nascimento de José Saramago promovido pela Fundação José Saramago, podemos encontrar um conjunto vasto de iniciativas, mas gostava de salientar, em particular, o plantar da centésima oliveira na aldeia natal do escritor com o nome de Josefa, em homenagem à avó do prémio Nobel da Literatura. Aos olhos da bisneta da avó Josefa, qual o significado desta homenagem?
Violante Saramago Matos: Enorme. Desde logo, porque há um simbolismo indelével nesta iniciativa. É como se estas oliveiras nos desafiassem, não propriamente a um regresso, mas a uma reflexão sobre uma certa identidade que se dilui, física e culturalmente, a uma reflexão sobre o planeta e o que fazemos nele. E dele. Tem também especial significado porque foi um dia na Azinhaga (já depois de o meu pai ter morrido e sabendo como lhe doía o desaparecimento dos olivais da aldeia), que o meu marido se lembrou que seria uma belíssima homenagem transplantar oliveiras para uma rua da Azinhaga de modo a que a 16 de novembro fosse plantada a centésima. Assim foi feito, foi escolhida a rua de entrada na aldeia para quem vem do lado de Lisboa, as oliveiras foram doadas por um proprietário e já lá estão 99. Cada uma será identificada com o nome de uma personagem dos seus romances, além dos nomes dos meus bisavós. No dia em que se cumprirem os 100 anos do nascimento do meu pai, a “Josefa” ocupará o seu lugar, no lado oposto à que primeiro foi plantada e que tomará o nome de “Jerónimo”.

RA: Que outra iniciativa destacaria no programa das comemorações do Centenário?
VSM: Há muitas iniciativas e muito variadas, em áreas e âmbitos, mais ou menos institucionais. Mas arrisco dizer que o que mais me tem impressionado é a quantidade de realizações anónimas, que tantas vezes até só venho a conhecer depois de se terem tido lugar em escolas de todos os graus de ensino, coletividades, associações, companhias de bailado e teatro, concertos, exposições – e que são para mim tão significativas, porque expressam o sentir de tanta e tanta gente que genuinamente quer celebrar Saramago que, ‘por acaso’, é o meu pai. Como não me sentir tão acompanhada neste meu sentimento de celebração?

RA: Ainda no contexto das comemorações, aconselharia uma visita à casa museu na Azinhaga, para os leitores de primeira viagem da obra José Saramago. Porquê?
VSM: Para os leitores de primeira viagem e para os de segunda. Uns para procurarem encontrar ali, na delegação da Fundação que ele quis abrir na Azinhaga, um pouco da marca do território onde ele se criou e poderem partir marcados para a leitura; outros, para depois de já terem lido, partirem agora marcados para novas e nunca repetidas leituras. Tentem imaginar, se vos for possível, que ele partiu dali e dali avançou para a pergunta constante, o pensamento, a reflexão, o sonho. Para a escrita, o compromisso cívico, a dimensão que veio a atingir.

RA: No livro “De Memórias Nos Fazemos”, da sua autoria, recorda algumas memórias vividas em família que são desconhecidas do grande público. Qual delas marcou mais o seu percurso de vida?
VSM: Este livro é uma expressão do que posso fazer. Quando queremos celebrar alguém por quem temos um imenso respeito e um amor sem tamanho, procuramos fazê-lo como somos capazes, com o que é nosso; não será, não é nunca, perfeito nem o melhor, mas é seguramente autêntico. E inteiro. A memória que mais marcou a minha vida é a da visita dos meus pais à prisão de Caxias quando fui presa em 1973. Há muitas outras, mas esta foi – e é – sem dúvida um fortíssimo alicerce.

RA: A sua detenção no 1º maio de 1973, na prisão de Caxias devido à sua luta antifascista, consolidou em certa medida a sua ligação com os seus pais. Que testemunho gostaria de deixar às gerações mais novas sobre esse período em que esteve privada da sua liberdade.
VSM: A ligação aos meus pais sempre foi muito forte. Nem eles foram pais ausentes, nem eu fui filha ausente. Por isso, é claro que se um dos lados deste triângulo se encontra numa situação de maior fragilidade, os outros dois funcionam, mais do que nunca, como suporte e apoio, capazes de provocar mais força e, até, mais união. Quanto ao testemunho de quem viveu num tempo de ditadura e contra ela procurou lutar, é muito simples e assenta em duas ou três premissas. Primeira – nada é definitivo, o que se julga ganho e conquistado hoje, perde-se amanhã, num ápice. Segunda – a verticalidade, a honestidade, o compromisso e a ética não estão fora de moda. O perigo é quando começamos a achar que esses são princípios que só os outros devem respeitar, e sobretudo quando começamos a iludir-nos que o mundo acaba no horizonte do nosso umbigo. Terceira – não há receitas sobre como agir; cada pessoa, cada sociedade e em cada momento tem que encontrar os seus próprios caminhos. Foi assim e será assim, independentemente do quando.

RA: Como filha de José Saramago acompanhou o laureado na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Literatura na Academia Sueca em 1998. No seu livro “De Memórias Nos Fazemos” afirma a certa altura “este já ninguém lho tira”. Como foi viver esse momento inesquecível? Considera ainda hoje que esse momento teve tanto de sublime como de improvável?
VSM: “Este já ninguém lho tira” é, claro, uma expressão marota de uma mulher adulta que estava profundamente orgulhosa e feliz e que, sim, também é claro que se lembrava do que ele tinha passado em 1992. Viver aqueles dias foi de facto inesquecível e acima de tudo indescritível. À distância, a vinte e quatro anos de distância, fica a perceção de como o Nobel da Literatura era respeitado e considerado. Por ser ele? Não sei, não assisti a outras cerimónias, mas naquele ano, sim. Sem dúvida pela sua personalidade, o homem que, em lugar de um protocolar agradecimento no jantar dos laureados a 10 de dezembro, leu uma pequena, mas contundente, intervenção que tinha escrito a propósito da celebração, nesse mesmo dia, dos 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sublime, sim. Improvável, também. Quer o discurso tão politicamente marcante, quer a origem do homem que aos 75 anos está em Estocolmo: uma família pobre, em casa tão pobre que o chão era de terra batida, numa pobre aldeia ribatejana, a Azinhaga.

 

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Créditos © Paulo Jorge Figueiredo

 

RA: De volta ao seu último livro “De Memórias Nos Fazemos”, a sua escrita leva o leitor a cruzar-se com várias personagens dos livros de José Saramago. Como uma conhecedora da globalidade da obra de seu pai, que personagens criadas por ele se tornaram inolvidáveis? Tem algum livro predileto?
VSM: Vamos por partes. Conheço alguma coisa da obra do meu pai. Mas é um conhecimento com três limitações: não estudei literatura – e por isso a avaliação que faço resulta muito da minha sensibilidade; sou bióloga e civicamente empenhada – pelo que acabo por procurar muito os compromissos que os livros ‘escondem’; e sou filha dele – razão por que não consigo garantir objetividade. Personagens. Algumas são para todos os dias, Lídia (O Ano Da Morte De Ricardo Reis), Blimunda e o cão das lágrimas (Memorial Do Convento), a mulher da limpeza (O Conto Da Ilha Desconhecida), Divara (In Nomine Dei), o senhor José (Todos Os Nomes). Tenho dois livros de que gosto particularmente, «A Caverna» e o «Ensaio Sobre A Cegueira».

RA: Em 1993, José Saramago auto impôs-se uma espécie de exílio na ilha de Lanzarote. Considera que durante o período entre 1989 e a atribuição do Prémio Nobel em 1998, contribuiu para que a sua obra literária ficasse esquecida? Durante esse período, onde considera que o seu pai foi buscar forças para continuar a sua obra literária?
VSM: Quem vai para Lanzarote não é um ilustre desconhecido. Dele já tínhamos grandes livros «Levantado Do Chão», «Manual De Pintura E Caligrafia», «Viagem A Portugal», Memorial Do Convento», «O Ano Da Morte De Ricardo Reis», «A Jangada De Pedra», só para referir alguns. É portanto sobre um escritor considerado, e reconhecido, e traduzido, que é exercido, em 1992, um inadmissível ato de censura pseudo-religiosa e/ou pseudo-civilizacional, por um inominável subsecretário de Estado da Cultura que veta a candidatura ao Prémio Literário Europeu de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. (Um parêntesis para dizer que, fosse sobre quem fosse, igual ato do subsecretário de Estado seria sempre um inadmissível ato de censura). Mas eu não creio que a obra literária do meu pai tivesse ficado esquecida. Se assim fosse, o Nobel da Literatura em 1998 não teria sido para ele. Tão simples como isto. E em Lanzarote, continuou a fazer o que desde 1976 tinha decidido, definitivamente, fazer: escrever. Sempre procurou trabalhar da mesma maneira. Desde quando eu era muito miúda, a memória que tenho do seu escritório é cenicamente muito simples: livros e dicionários, para leitura e consulta, por toda a parte, no chão, nas estantes, uma secretária também com livros, uma máquina de escrever, papel e um homem atrás da secretária. Com horário de trabalho, com método, com rigor. Sempre foi assim. E assim continuou a ser. Com a convicção que havia um caminho para seguir. E seguiu-o.

RA: Na sua opinião, para combater esse esquecimento, qual seria a melhor estratégia para a divulgação da sua obra literária?
VSM: O que ele e o seu editor, Zeferino Coelho, decidiram fazer foi sem dúvida a opção certa. Como, de resto, se provou.

RA: Concorda com a seguinte afirmação: José Saramago com a sua obra, deixou-nos um legado que desassossega e provoca em nós um eterno sobressalto cívico?
VSM: Absolutamente de acordo!

RA: Como ator tive oportunidade de participar no espetáculo “A Viagem Do Elefante”, uma produção teatral de rua da ACERT – Trigo Limpo. Após o blackout ouvia -se em voz off o escritor José Saramago afirmar “sempre chegamos ao lugar onde nos esperam…”. Esse lugar poderia ser a casa da avó Josefa? Que memórias e ensinamentos guarda do convívio com os seus pais e a bisavó Josefa na Azinhaga?
VSM: Poderia, poderia ser a casa da avó Josefa e do avô Jerónimo. De resto, por alguma razão começou com eles o discurso na Academia Sueca a 7 de dezembro de 1998, “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam dessa escassez os meus avós maternos (…). Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.” Da Azinhaga guardo memórias, sim. Umas mais claras, outras mais difusas. Mas creio que as mais significativas estão no livro. Espalhadas por aqui e por ali, mas estão lá.

Carlos Cruchinho

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