Made in Lusitânia
História

Made in Lusitânia

A antiquíssima Lisboa não apenas já teve outro nome, Olisipo (Felicitas Julia Olisipa, na Lusitânia Romana), no período em que foi uma importante cidade do Império Romano, mas deixou, naturalmente, histórias a metros de chão abaixo do nível das suas ruas atuais, e qual um excelente sítio arqueológico, é capaz de oferecer tanto as deslumbrantes evidências materiais de encher os olhos quanto as suas correspondentes interpretações que dão acesso à forma de vida dos antepassados milenares, o seu quotidiano, alegrias e tristezas, lutas e recompensas, enfim, o coração e a alma daqueles que viveram antes de nós, ajudando a nos moldar e a sobreviver aos muitos séculos que se seguiram. Como eles eram? Assemelham-se a nós no que diz respeito ao trabalho, por exemplo? O que representou a Lusitânia frente ao mundo cujo poder fluía desde o maior império já registrado nos livros de história e em cada pedaço de cerâmica encontrado durante escavações arqueológicas e obras da engenharia, felizmente assistidas pelo acaso? Então, quer voltar no tempo? Sincronize o seu relógio histórico em dois mil anos! Boa viagem!

Reconstrução virtual 3D da cidade romana de Olisipo (Lisboa) por César Figueiredo
Reconstrução virtual 3D da cidade romana de Olisipo (Lisboa) por César Figueiredo

O dia amanheceu nublado naquela terça-feira, mas havia uma forte promessa de sol e um pouco de calor em seu transcorrer, o frio castigava as pessoas que percorriam as estreitas ruas da cidade. Era cedo, e a madrugada não se intimidou em deixar para trás a gélida atmosfera típica do final de janeiro, logo, uns passos eram lentos de acordo com o sono que teimava em ceder espaço, outros, contrariamente, pareciam ter pressa de chegar aos seus destinos, à fábrica de peixes em conserva, em especial, pois os barcos ancorados, de corporações ou societates, revezavam-se no volumoso carregamento e no transporte que distribuía aquelas delícias para todo o Império Romano.

Onde hoje se situa a Rua dos Correeiros, na Baixa de Lisboa, acessa-se o que restou de algumas cetárias, o nome dado aos tanques de conserva de peixes cuja fábrica utilizava a salga (método que consiste em cortar a carne do peixe em peças e depositá-las alternadamente em camadas com sal em tanques, cobrindo-se finalmente com a última camada salgada e pesos a fazer pressão, na descrição de Plínio, o naturalista e historiador à época), e o garum, molho refinado e luxuoso feito a partir dos derivados piscícolas, deliciosamente apreciados e devidamente poetizados nas obras de Sêneca e Horácio. E o liquamen, um pouco mais líquido que o garum. Ou, na Rua dos Bacalhoeiros, na qual as ruínas ecoam à voz da memória que irrompe de semelhantes tanques e ânforas de acondicionamento, margeados pela proximidade do rio Tejo, mais próximo ao trânsito junto às embarcações naqueles tempos.

Havia, ainda, poços, pátios e edifícios que davam suporte à jornada diária de produção e comércio, um verdadeiro frenesi movido pela grandiosa exportação cuja extensão somente se limitava às fronteiras do império. Havia algo de poderoso naquela rotina que se fazia presente em muitíssimos outros sítios para além da península, havia uma presença de qualidade – uma espécie de certificação conquistada – atestada pelos quatro séculos de duração neste modelo de vida organizacional, encerrando-se unicamente pelo declínio e queda do império, no século V. Por todos os cantos, as mesmas bocas que apreciavam as incomparáveis iguarias, também pronunciavam a sua origem, uma propaganda digna de premiações em nossos dias, uma marca sólida e confiável, ‘Made in Lusitânia’, sempre que a prazerosa lembrança ocupasse as mentes dos seus muitos admiradores. Ah! Um legítimo orgulho aos profissionais de reconhecida competência, qual o encarregado e os seus ajudantes, tomados pelo morno calor do sol ao saírem da fábrica em mais um dia de ofício e de construção da novela real que os cercava.

Destacou-se Olisipo, dada a sua relevância, elevando-se ao status de capital da nação que se ergueu posteriormente, dando continuidade à produção e ao comércio de peixes em significativa escala. Todavia, outros sítios igualmente contribuíram com a abundante atividade, tal como Setúbal, a Cetóbrica Romana, em imponente conjunto fabril de tanques, na Travessa Frei Gaspar, revelando a harmoniosa convivência entre o passado e o presente, o comércio de ontem e de hoje. É possível andar sobre a transparência dos vidros modernos que divisam e expõem magistralmente a antiguidade, tornando a arqueologia uma amiga mais próxima do dia a dia, uma partilha entre o especialista e o leigo. Perde-se o fôlego diante de tal possibilidade, cativando ao contato com o conhecimento e à paixão que nasce quando olhamos para nós mesmos através do outro na outrora da existência.

Armando Correa de Siqueira Neto

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