Padre Vieira: A luz que ainda nos alcança
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Padre Vieira: A luz que ainda nos alcança

“Há pessoas semelhantes à vela que se consomem para alumiar o caminho alheio.” Se nos detivéssemos reflexivamente nesta máxima do padre António Vieira, talvez encontrássemos um imenso sentido para a vida, tanto à evolução própria quanto a dos nossos semelhantes. Enfim, a espécie que se questiona filosoficamente desde sempre: quem sou, de onde venho e para onde vou… Então? Somos luz? Viemos da luz? O nosso destino, finalmente, será a luz? Alumiados pelo processo evolutivo que nos é exigido sem o percebermos tão claramente ainda? Alumiando a estrada dos demais qual o humano e profundo reformista Vieira exprimiu poéticae inspiradoramente? Quem sabe? Eis a luz que nos chega através das ponderações que só o espírito é capaz de erguer sobre si.

Padre Vieira – A luz que ainda nos alcança DR

A lisboeta Maria de Azevedo indicava ao marido Cristóvão Vieira Ravasco que o primeiro filho lhes chegava (além dos outros três que se seguiriam), trazendo ao mundo, em fevereiro do ano 1608, o pequeno António Vieira. Ali, na modesta casinha em Lisboa, da Rua do Cónego, pertencente à antiga freguesia da Sé, nasceu aquele que se tornaria o grande pensador e ao mesmo tempo humilde homem em defesa dos direitos mais sagrados. Nove dias depois, realizou-se o seu batizado na vizinha Igreja da Sé — erguida desde o século XII.

Local em que nasceu António Vieira, antiga Rua do Cónego, na Sé, Lisboa Carlos Cruchinho

O pai trabalhou como escrivão para a inquisição, era letrado. Mas foi em 1619 que conseguiu um cargo no Tribunal da Relação na Bahia, na cidade de Salvador, a capital brasileira, anos depois de já ter-se mudado para lá, em 1614. Foi então que trouxe a família para o Brasil. Um novo mundo abria-se diante do menino lusitano que tomou contacto com os estudos através do Colégio dos Jesuítas, e, apesar das dificuldades iniciais, saiu-se um precioso aluno. Em 1623, ingressou na Companhia de Jesus. Prosseguiu à trajetória estudantil em Teologia, Lógica, Matemática e Metafísica, além do mestrado em Artes. Em 1634 foi ordenado sacerdote. Os conhecimentos eram-lhe íntimos amigos, tanto que exerceu a docência.

Vieira tinha ideias políticas próprias a respeito de Portugal, e as pronunciava abertamente, causando oposições, como era de se esperar. Foi embaixador nomeado pelo então rei D. João IV, o monarca que tanto o admirou pela oratória e vivacidade. Missões na Holanda e na França fizeram parte do roteiro diplomático a ele atribuído. Obteve sucesso em alguns eventos, noutros… Porém, o seu impulso humano e revolucionário – muito à frente do seu tempo -, defendendo os judeus, criaram antipatias que o levaram a retornar ao Brasil, pois a atmosfera pesava-lhe em demasia. Viu-se em missões no Grão-Pará e no Maranhão, era o fiel escudo dos índios, explorados à escravidão. Um guardião dos seus direitos, o seu Paiaçú (em Tupi), ou Pai Grande. Escreveu métodos de catequização que adentraram aos sertões e às florestas, por mais de cem anos, chegando mesmo às regiões amazónicas. As imensas terras não o impediam de lançar o saber adiante, muito adiante.

Padre Vieira – Lisboa – século XVII DR
Padre Vieira – Salvador – século XVII DR

    Em 1654, partiu para Lisboa, e quase morreu na tempestade que armou-se próxima aos Açores, cuja tripulação somente se salvou em razão de um navio corsário que por ali navegava. Não obstante, mantendo a sua já conhecida defesa aos judeus, sofreu nas garras da inquisição, que o atormentou significativamente: “proposições heréticas, temerárias, mal soantes e escandalosas”, foram declaradas em sua acusação, na cidade de Coimbra, “Auto-da-fé privado” – impedindo-o de exercer a pregação -, além do pagamento das custas. Foi absolvido, entretanto, e em 1669 mudou-se para Roma, por lá permaneceu seis anos, defendendo a canonização dos “Quarenta Mártires Jesuítas”, uma missão a ele confiada. Em 1681, retornou definitivamente ao Brasil, cuja explicação, justificou-se, foi a de encontrar-se mal de saúde. Doente, com as mãos débeis à escrita, aos 89 anos, em julho de 1697, faleceu em Salvador.

    Padre Vieira – Capa do Processo de Pe. Vieira, de Coimbra DR
    Padre Vieira – Capa do Sermão do Cego DR

      Deixou 700 cartas e 200 sermões, dentre os quais, é possível destacar ‘O Sermão de Santo António aos Peixes’, ‘O Sermão do Bom Ladrão’, ‘O Sermão da Quinta Dominga da Quaresma’, ‘O Sermão da Sexagésima’. Todos eles eram atentamente ouvidos por muitos que à barroca Igreja de São Roque (construída no século XVI, Misericórdia, Lisboa) se dirigiam para lhe ouvir, do alto do púlpito, cujas palavras surpreendiam provocativamente. O poeta Fernando Pessoa o intitulou de ‘O Imperador da Língua Portuguesa’. Uma justa homenagem.

      As suas obras estão enraizadas na complexidade das ideias, na visão política que formou e na lucidez de quem conhecia a alma humana e os seus mistérios mais aprofundados, tal como descreveu: “Dar perdão de pecados é jurisdição ou regalia somente de Deus: Logo, como me posso eu dar a mim mesmo o perdão de meus pecados? Funda-se esta sentença naquela promessa de Cristo: Dimittite, et dimittemini (Lc 6, 37): Perdoai, e sereis perdoados. E como esta promessa é condicional, e a condição depende de mim, quando eu cumpro a condição eu sou o que me perdoou.”.

      Padre Vieira – Pregação do Padre Vieira na Igreja de São Roque, em 1669 DR
      Padre Vieira – Púlpito da Igreja de São Roque DR

        O jesuíta António Vieira, ainda é, graciosamente, a luz que nos alcança, e nos faz pensar sobre a força e o domínio, a vontade e a inteligência, mas, sobretudo, a coragem e o risco de viver, pois fazer significa provocar, ainda que nos custe um bocado da própria liberdade, fruto caríssimo da árvore da convivência humana nos terrenos da evolução.

        Armando Correa de Siqueira Neto

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