Memórias: tomar banho no alguidar à lareira
Mas, se o suicida tem “direito” ao seu desespero, a sociedade não pode validar esse desespero; a sociedade não pode eternizar algo que é relativo e passível de recuperação; a sociedade não pode aceitar o desespero como argumento. No fundo, há que ser empático com o suicida, mas implacável com a lógica do suicídio.
Henrique Raposo, IN Rádio Renascença, 09 de fevereiro de 2018
Foi este parágrafo que me motivou para a leitura do livro Alentejo Prometido do Henrique Raposo, cujas crónicas leio regularmente, há vários anos, no semanário Expresso. O autor conta-nos uma história do Alentejo, através de histórias familiares e memórias pessoais. Aborda questões como o suicídio na região, a violência doméstica ou a pobreza. Rejeita liminarmente a cultura do suicida que existe no Alentejo, num livro pequeno, tem 107 paginas, mas muito intenso, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Igualmente pequeno, 159 páginas, mas igualmente interessante é o livro Silêncio na Era do Ruído, do norueguês Erling Kagge que elogia três prazeres, LER, SENTIR e PENSAR. O silêncio e a leitura, quando combinados, ajudam a sentir e a pensar…
O Henrique reconhece, eu confirmo, que “os alentejanos não tinham o monopólio da pobreza. Os beirões eram tão ou mais pobres do que os alentejanos. No tempo da ceifa, o Alentejo enchia-se de ‘ratinhos’ – beirões que desciam as serras para procurar trabalho na planície.”
Os meus tios paternos, eram oito irmãos, rumaram com tenra idade, 10…11…12 anos ao Alentejo e também aos arrozais de Alfarelos. O meu pai começou no arroz até se tornar padeiro, infâncias de trabalho, deslocados das famílias, à procura do sustento. Fugiam à pobreza, dos pés descalços, das calças rotas, da sardinha (a minha avó era peixeira, percorria quilómetros com a canastra à cabeça) dividida por três, do vinho e da aguardente com açúcar…
Enquanto vivi numa pequena aldeia, Martim-Joanes (Cadaval) era comum, na época das vindimas, os beirões, pejorativamente apelidados “Malteses” ou “Bimbos” (‘ratinhos’ no Alentejo) passarem temporadas nas quintas do Oeste como força de trabalho para as vindimas, apanha da maçã e da pêra.
Com 11 anos, a minha irmã tinha 7 anos, rumámos para norte, o regresso à terra dos meus pais. Tempos difíceis, de pobreza e muitos sacrifícios. Também nós, como narra HR, “Na ausência do autoclismo, jogava-se um balde água na sanita”.
Há poucos dias, recordei, em conversa com colega, que também eu terei chegado muitas vezes à sala de aula a cheirar a fumo da lareira (em pleno século XXI, em Portugal, ainda há alunos que não têm uma casa com as condições básicas e continuam a assistir às aulas com as suas roupas impregnadas do cheiro a fumo…). Sim, a pobreza tem cheiro… Isso mesmo nos diz Mário Vargas Llosa no artigo “O Odor da Pobreza” publicado no El País.
HR explica: “Mas nada se comparava à bravura logística do banho. Sem água canalizada e sem esquentador (mordomias que chegariam em 1993), tomávamos banho como no tempo dos romanos: aquecíamos uma porção de água na lareira que depois era derramada num alguidar que fazia de banheira. Era uma vidinha muito etnográfica.”
Claro está que, na dureza do Inverno beirão, o alguidar era estrategicamente colocado ao lado da lareira para combater o frio…
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