Os limites
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Revista Amar - Os limites

 

Quando chego à exaustão, aliada a uma frustração gigante de estar sempre a fazer o que não quero fazer, silencio-me. Fico mudo. E sinto que estou esmagado.

Tenho sérias dificuldades em estabelecer limites assertivos que façam as pessoas entenderem que a partir de determinado instante não devem mais avançar. Julgo que acontece por ter cara de bom homem, ser genericamente simpático, diria genuinamente simpático, e facilitar o acesso, comunicar como um amigo lá de casa sem complicações nem demasiadas peneiras. Resulta num dos piores tormentos da minha vida, o querer estabelecer o meu espaço, necessitar com urgência regressar à minha quietude, planeta onde radico os meus livros, os meus desenhos toscos e busco as minhas soluções, mas quase sempre o faço com alguém, por vezes tanta gente, a puxar-me para outro lado, solicitando a minha atenção para os seus interesses obrigando-me a adiar meses e anos a concentração plena pela qual cada vez mais aguardo como por um milagre.

Ando há uns tempos a avisar que me esconderei para terminar um novo romance. Estou com este livro à perna há muitos anos e nunca consigo mais do que 15 dias seguidos de trabalho sem que alguém me imponha a presença em algum evento, em outra cidade, por vezes absurdamente longe, para cumprir com atenções que não me são prioritárias. Quinze dias seguidos de retiro são só o tempo necessário para desintoxicar o corpo da pressa da vida. Não me servem. Funciono por imersão absoluta. Quando quero escrever eu tenho de o fazer sem data de regresso. Acima de tudo, e mais agora que estou a ficar velho, eu solicito a liberdade.

A cada pessoa que informo acerca da minha pretensão de me trancar a escrever recebo de resposta uma insistência para o fazer depois. Depois uns dias, só mais uns dias, para ir almoçar ou jantar, gravar vídeos, ler livros das primas, dos jovens amigos e promissores, reunir com pessoas finas, dar a cara por projectos que nem sei bem o que são, ir e ir e ir, até simplesmente não ter como controlar o que faço e, sobretudo, não conseguir fazer o que eu quero fazer.

É um padrão na minha vida, pelo que o problema tem de estar em mim. Digo não de modo débil. O que também significa que algumas coisas a que digo sim não cumpro simplesmente porque não é mais possível, quando começo a desesperar, prestar atenção a mais nada. Quando chego à exaustão, aliada a uma frustração gigante de estar sempre a fazer o que não quero fazer, silencio-me. Fico mudo. E sinto que estou esmagado. Aí, começo a perder o jeito para estar com as pessoas a quem iria prestar favores e já não tenho mais como solucionar nada. Com o tempo, aprendo que a minha única saída é ir perdendo amigos, perdendo o que for preciso, pela sobra de sanidade e pelo resto de alegria que a vida ainda é.

Decidi desaparecer em Maio, foi um império de trabalhador que me deu. Só volto no fim do livro. Até lá, estarei como cruel no meu planeta. Se os amigos não o puderem entender, estará tudo muito bem. Não voltarei a explicar.

Valter Hugo Mãe

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)

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