O abstracionismo de Vieira da Silva
Arte & Cultura

O abstracionismo de Vieira da Silva

“Envolve a sua pintura numa poesia de cores e formas, cria composições abstratas únicas. Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) viveu entre duas nacionalidades mas será sempre a mais internacional artista plástica portuguesa.”, extraído de ‘RTP Ensina’, ao descrever a singular pintora nascida à Rua das Chagas, no lisboeta Bairro Alto, que testemunhou as pequeninas mãos, aos 5 anos, rechearem os cadernos de desenhos, o lúdico período que a levaria a dar as primeiras pinceladas à óleo no seu décimo primeiro ano, mudando-se, nove anos depois, para a arrebatadora Paris em viagem de crescimento e incomparável luz artística.

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Os traços parisienses conduziram-na, como que inevitavelmente, ao seu grande amor, o húngaro Arpad Szenes (1897-1985), pintor com quem dividiu o coração, as tintas e tantas exposições, uma vida com passos compartilhados na profissão e na intimidade de cores fortes e vivas.

Os tons expressivos fizeram parte da sua manifestação artística, talvez uma das cativantes características que ousaram comunicar a sua vida interior, marcada, desde bem cedo, por passagens de forte impacto, tal como o falecimento do seu pai, na Suíça, aos três tenros anos de idade, o embaixador Marcos Vieira da Silva, cuja condição financeira era muito boa. Então a pequenina passou a viver com a mãe e o avô materno, José Joaquim da Silva Graça, diretor do jornal ‘O Século’ e proprietário da revista ‘Ilustração Portugueza’.

Anos depois, em 1928, ela e a mãe se mudaram para Paris, e seus estudos de escultura se deram na Academia La Grande Chaumière, abandonando a escola. Percebeu então a pintura como o seu imenso ideal, mergulhando no universo do qual não se retiraria mais. Apresentou-se no Salon de Paris, e também conheceu Arpad Szenes naquele quotidiano cultural. Casaram-se em 1930.

Entre exposições e viagens, a vida prosseguiu no contexto político de crescimento da direita europeia e a explosão nazista de uma Alemanha que se tornou mortalmente perigosa, notadamente a grupos específicos, dentre os quais o seu amado marido fez parte, era judeu, além de comunista. Em ambas as condições os riscos os assombraram, restando ao casal mudar para o Brasil, haja vista o governo português, sob a mão ditatorial de Salazar, opor-se ao comunismo.

O oceano Atlântico divisou a necessária travessia do passado que se formou às costas dos amantes que deixaram o velho continente, olhando o novo horizonte que se formava bem à frente, uma exigida esperança que acompanhava tal movimento até ao Rio de Janeiro – primeiramente no Hotel Londres, em Copacabana, depois numa pensão no Flamengo, e, finalmente, no Hotel Internacional, em Santa Tereza – seu porto seguro apesar das dificuldades impostas pela dor e a convulsão mundial que separou tantos de suas origens e conhecidos. Eles receberam passaportes diplomáticos. Pintaram, ensinaram e expuseram as suas obras até 1947. O seu círculo de amizades incluiu o desenhista Carlos Scliar, a escritora Cecília Meirelles, o escritor Carlos Drummond de Andrade, dentre outros.

A França foi novamente agraciada com o retorno, primeiramente dela, pois Arpad ainda lecionava conforme o compromisso firmado à época. Vieira da Silva teve o seu apogeu a partir deste período, e o reconhecimento lhe permitiu vender as obras a museus, por exemplo, além de fazer ilustrações para livros e cenários para peças de teatro. Exposições individuais de grande estatura deram o contorno iluminado à sua carreira em vários países, brilhando, ainda, tanto ao ganhar, em 1962, o Grande Prémio da Bienal em São Paulo quanto o Grande Prémio Nacional de Paris, em 1963. Já havia recebido a naturalidade francesa em 1956, uma admirável filha artística da terra. E somente em 1974 retornou para Portugal, dada a liberdade que virou a página da história na conhecida Revolução dos Cravos, estabelecendo o frescor das possibilidades para ambos.

“Eu quero ver o mundo de forma diferente”, deve ter sido a impactante afirmação abstraída por Maria Helena na tentativa de o captar e imprimi-lo nas telas através da pintura que nasceram das suas mãos, da poesia que inundava as formas e da voz que ecoa até aos dias atuais pela intensa coloração e movimento presentes. Certamente ela viu o mundo de forma distinta, mas o dividiu numa espécie de comunhão cultural.
Faleceu na última década do Século XX, projetando o seu abstracionismo para o milénio que tão proximamente nascia. Mais: a sociedade científica União Astronómica Internacional nomeou uma cratera do planeta Mercúrio com o nome de Vieira da Silva, firmando-a nos céus das homenagens. A artista lançou-se ao futuro.

Armando Correa de Siqueira Neto

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