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Beleza & Moda

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No mês passado, não fosse alguém mais atento a denunciar a situação ao Presidente da Junta de Póvoa de Varzim, Ricardo Silva, nem tínhamos dado conta da cópia infeliz, que a estilista Tory Burch fez da nossa Camisola Poveira. A total ignorância e o emprego vago da palavra “tradicional”, têm servido para o uso e abuso indevido de expropriações de cariz cultural, por designers bem conhecidos de todos nós; sem sequer se darem ao trabalho de investigar o que copiam, desde que sirva o propósito comercial; ainda que atropelando séculos de história, assim como o ganha-pão dos artesãos indígenas, e de toda uma organização sustentada pela tradição. Não bastava a senhora Burch usurpar-nos a camisola poveira, como ainda nos ofendeu, quando a referênciou “inspirada” na “Baja” mexicana… e a pôs à venda pela quantia pornográfica de 695,00 euros – dez vezes mais cara do que as originais! O pedido de desculpas chegou, com a nota de que a camisola por lapso, não mencionou as origens poveiras. O Presidênte da Câmara de Póvoa de Varzim, Aires Pereira, exigiu de imediato, o reconhecimento de propriedade intelectual da camisola; e não se fazendo esperar, emitiu no site da Câmara, uma justa campanha com o título “A Camisola Poveira é Nossa!”; com o intento de elevar o trabalho e as técnicas dos artesãos locais. A fotografia escolhida, é esta que se vê ao lado, tirada pelo fotografo Casimiro dos Santos Vinagre, por acasião da Exposição do Mundo Português, no Jardim da Praça do Império, em Lisboa.

 

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Se a estilista ao menos, tivesse a ténue curiosidade de perceber um pouco da etnografia do objeto que se deu à libertinagem de copiar, ficaria no mínino, surpreendida.
Com cerca de 150 anos, a camisola poveira foi criada para proteger os pescadores do frio, mas também representava os homens do mar, numa vertente festiva. É feita em lã branca de fio grosso, proveniente da zona da Serra da Estrela, denominada “lã poveira” e decorada a ponto de cruz, com motivos de inspiração náutica (escudo nacional, com coroa real; siglas; remos cruzados; vertedouros; etc), sendo somente utilizada lã de cor preta e vermelha nos bordados.
A camisola poveira era inicialmente (1ª metade do século XIX) feita em Azurara e Vila do Conde e bordada (ou marcada) na Póvoa pelos velhos pescadores, que contavam as suas histórias em simbolos misteriosos. Entretanto, passou a ser bordada pelas mães, esposas e noivas dos pescadores, e depois feita e bordada na Póvoa.

 

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Esta peça sofreu naturalmente uma evolução ao longo do tempo. Inicialmente (séc. XIX) as camisolas eram mais simples, ficando a zona do bordado confinada praticamente ao peito.A beleza e o pormenor do trabalhado da camisola poveira não se resumem ao peito, embora seja a área objetivamente mais marcante.

Também as mangas, o decote, as barras no punho, o remate junto ao ombro e na parte inferior são objeto de trabalhos com diferentes níveis de complexidade. A originalidade desta peça não está só nos motivos decorativos, mas também no seu modelo invulgar, tendo em conta o contexto do traje tradicional em que se enquadra. De mangas reglan, tem uma abertura à frente com um conjunto de pequenos torcidos que permitem abrir ou fechar o decote.

A camisola poveira caíu de desuso, depois do trágico naufrágio de 27 de fevereiro de 1892, onde padeceram mais de cem homens. Optando por fazer o luto de preto, os pescadores puseram as suas camisolas de lado; até serem redescobertas em 1936, pelo etnólogo António dos Santos Graça; também fundador do Rancho Folclórico Poveiro. As camisolas voltaram às luzes da ribalta, com o filme de 1942, “Ala-Arriba”, de Leitão de Barros.

A camisola atingiu grande popularidade nos anos setenta; e desde então tem sido modernizada. Tornou-se tão conhecida que tem sido apresentada em desfiles internacionais de moda. Foi o caso do estilista Nuno Gama, que em 2006 a incluíu na sua coleção, fazendo uma parceria com os artesãos locais. A camisola está patente de vários museus nacionais e foi incluído no lançamento de uma coleção de selos, sobre trajes regionais, em 2007.

Há até registo de celebridades que a vestiram; como a actriz Grace Kelly, o poeta Sebastião da Gama, a actriz Alissa Wilms que a exibe no filme “The Reader”, e o fotógrafo da National Geographic, W. Robert Moore.
Mais interessante do que conhecer a história das camisolas poveiras, é aprofundar um pouco da origem e modo de vida dos poveiros, para compreender os mistérios que se encerram nas marcas e simbolos dos seus bordados; porque é aí que reside a herança patrimonial das camisolas, o que as faz realmente únicas.

As origens da Póvoa remontam ao século XI, com as incursões dos Viquingues e Normanos. Fundam aí uma localidade a que denominam “Euracini”, e instituem o seu modo de vida aos indígenas; entre outras, a Lancha Poveira; um barco desenvolvido a partir do Dracar viquingue sem a popa e a ré pronunciadas, com vela; e as runas; os primitivos caracteres escandinavos, que se tornaram conhecidos no regionalismo por “marcas”, de grande unidade cultural entre eles; e que passa a ser um código entendido por gerações de pescadores que não conheciam a escrita latina, e que permaneceu até à actualidade, através das marcas das camisolas.

As marcas fazem parte da linguagem escrita do dia a dia; quer seja para recordar datas importantes; como o casamento, viagens ou contas em dívida. Alguns merceeiros faziam assim os assentos no livro dos fiados. Os pescadores faziam as marcas a navalha, sobre a madeira; pintadas nos barcos; nas velas; nos mastros; nos lemes; nos boireis; nas talas; nos bartidoiros; nas barracas de praia; nas mesas e cadeiras; em todos os objetos de pertença; precisamente para mostrar propriedade.

O poveiro, ao casar-se, registava a sua marca na mesa da sacristia da Matriz, gravando-a com a faca que lhe servia para aparar a cortiça das redes. A mesa da sacristia da velha igreja da Misericórdia, que serviu de Matriz até 1757, tinha gravadas milhares de marcas, representando um precioso documento para estes estudos.

Infelizmente, essa mesa desapareceu com a demolição da Igreja sem que dela ficasse o menor vestígio ou documento fotográfico. Contudo, ainda se vêem hoje algumas gravações destas marcas nas mesas das sacristias da atual Matriz e da Igreja da Lapa.

Nas suas arribadas à costa norte, os poveiros gravavam nas portas das capelas mais destacadas, nos areais a sua marca como documento da sua passagem por ali. Algumas dessas capelinhas conservam ainda as suas antigas portas cobertas de marcas poveiras.

Mas não era só nas arribadas que o poveiro assinalava a sua passagem com as marcas. Nos mosteiros ou capelas onde fosse cumprir uma promessa, normalmente quando ela era feita em nome coletivo, isto é, da companha, gravava nas portas dos templos, nas mesas das sacristias, nas cercaduras em madeira, nos arcos cruzeiros, a sua marca, que assim servia de testemunho do cumprimento da sua promessa.

Era natural que os velhos poveiros analfabetos, em lugar de assinarem em cruz nos documentos públicos, fizessem a sua marca familiar, que era o equivalente à sua assinatura. Poucos documentos chegaram até aos nossos dias; apenas nas atas da velha Associação Marítima dos Poveiros, se encontram alguns vestígios.
As runas representam também brasões de família, transmitidos de pais para filhos, carregados de simbolismo. Recorriam a imagens como o Sarilho, o Coice, o Arpão, o Pé de Galinha; a Grade; a Lanchinha, a Calhorda, etc. A sigla de São Selimão era vista como um símbolo protetor.

 

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Também é de salientar os carateres númericos.

 

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As siglas são herdadas e aos filhos era dada a mesma marca mas com um traço, chamado de pique. O mais velho tinha um pique, o segundo dois. Tal como na Dinamarca e na Bretanha, o herdeiro da família é o filho mais novo; isto porque seria esperado que este tomasse conta dos pais na velhice. O herdeiro, não teria nenhum pique, herdando assim a marca-brasão. Formava-se assim, conforme o número de piques, cruzes, estrelas ou grades, esta linguagem única e misteriosa; que definia as famílias, as castas, as localidades a que pertenciam os pescadores… e que até os identificava, no caso de morrerem num naufrágio.

 

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Estas runas aparentemente indecifráveis, representam a história de um povo secular.

Como é comum nas regiões piscatórias, assenta numa cultura matriarcal; já que é a mulher que governa a casa, pois o destino do homem da casa é incerto. Os poveiros praticavam endogamia; casavam com parceiros genéticamente semelhantes. Através desses matrimónios, mantiveram até ao início do século XX as suas características físicas que não se assemelhavam com nenhum outro povo das outras regiões do território. Como escreveria Ramalho Ortigão: “Têm cabelo e olhos claros, ombros largos, peito atlético, braços e pernas hérculeos, rostos largos e feições duras”. Por essa razão, a população antes, estava dividida por castas.

 

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Os “Lanchões” que possuiam barcos capazes para a pesca no alto mar, eram os mais endinheirados. Os “Rasqueiros”, burguesia que usava redes “rasca” para a raia e caranguejos; e os “Sardinheiros” ou “Fanequeiros”, que possuíam pequenos barcos para peixe de menor importância, junto à costa. Outras castas proibidas de se misturar com as dos pescadores, eram os “Lavradores”, os “Sargaceiros” e os “Seareiros”; exatamente pelas longas ausências no mar.

Os poveiros viam-se como uma raça à parte; a Raça Poveira, traço da sua valentia e garra. Tal como os povos nórdicos, acreditam em seres mitológicos e criaram um imaginário rico em lendas; como as histórias dos pescadores que vieram até Newfoundland para a apanha do bacalhau e as mulheres Esquimós que caíram de amores por eles; ou as visitas a Saint John; os naufrágios e os dóris perdidos no mar. Em relação à raça, há inclusive uma expressão que nasce de uma história.

El Rey D. Luís I, ao navegar junto à costa, viu uma lancha poveira. O rei ficou admirado pela aparência física distinta dos tripulantes e perguntou-lhes se eram espanhóis, que indignou os poveiros que responderam que não. O rei perguntou-lhes então se eram portugueses, e os poveiros dizem de novo que não; que são “Poveirinhos pela Graça de Deus”. Ao que o rei lhes pergunta de que reino são, respondem que são do “Reino da Póvoa”.

Depois de uma merecidissíma dissertação sobre a Camisola Poveira e os poveiros, há que referir que o plágio para a senhora Burch, parece ser algo recorrente. Na mesma coleção, podemos encontrar a nossa couve Portuguesa característica da Bordallo Pinheiro e outras peças tiradas no mesmo fôlego “inspiracional”.

 

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Já anos antes, o estilista Nuno Gama, se tinha questionado sobre Tory Burch e o seu genuíno valor. Também ele se viu lesado no logotipo da sua própria marca.

 

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“A cruz Nuno Gama assenta numa cruz de cristo, que deve ser das primeiras sinaléticas que o homem criou no início da nossa cultura. A cruz de cristo não é nossa. Existem 500 mil cruzes diferentes no mundo inteiro, de todos os géneros e feitios, que foram sendo redesenhadas e readaptadas consoante a sua função. O meu logótipo tem uma história para contar. A cruz de cristo foi redesenhada por mim. Não sei o que está por detrás do outro logótipo. Agora quando tens as duas cruzes a uma determinada distância elas parecem iguais. É aqui que está o problema. Quando há confusão alguma coisa está errada”, afirma o criador nacional em entrevista ao programa “Imagens de Marca”. – De referir que Nuno Gama fundou a marca em 1993, e Tory Burch só apareceu em 2004.

 

 

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Burch já em 2018 passou a mesma vergonha com a sua coleção “Resort”, com este casaco da cultura romena – segundo a mesma – “de inspiração africana”.

 

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A expropriação intelectual é um problema costumeiro que atinge grandes nomes da moda, bem como marcas de pronto-a-vestir. A par de Burch, Carolina Herrera tem sido também uma repetente nestas lides. No ano passado, na sua coleção também denominada de “Resort”, foi acusada de plágio de bordados e desenhos de povos indígenas, pela Secretária da Cultura do México.

Mas também já ultrapassou as marcas connosco, sem que ninguém tivesse dado conta, fazendo de sua criação o nosso tradicional cesto de vime, que colocou à venda por 490.00 euros.

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Helmut Lang, desenhou o vestido dos gatos em 1989. Nem a propósito, Reinaldo Lourenço “cria” o segundo, em 2012.

 

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Original, por Renè Gruau (1909-2004), ilustrador da Dior. Cópia, por Jeremy Scott, da Moschino, em 2018.

 

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Também Marc Jacobs não escapa a estas polémicas do “cópia e cola”. Terá sido acusado pelo filho do artista sueco Gosta Olofsson, que entrou em contacto com o estilista para discutir as semelhanças entre um lenço desenhado pelo seu pai, na década de cinquenta, e o do estilista americano. O lenço retrata a localidade de Linsell, onde o artista nasceu e foi criado. Alguém terá viajado da Suécia para a América com o lenço original, que o terá feito chegar ao designer; que por sua vez, viu uma oportunidade de ganhar dinheiro, mudando unicamente o nome e a assinatura. No final, Marc Jacobs terá chegado a um acordo económico com o filho do já falecido artista, que lhe permite continuar a comercializá-lo.

 

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Os maus exemplos nunca se esgotam. Para finalizar, uma máquina de cópias, a Zara. A artesã que aparece na foto, é de Aguacatenango, no México, e borda desde os sete. Ganha 150 pesos por peça (menos de dez dólares canadianos). Nunca sentiu que o seu trabalho fosse valorizado; se alguém se mostra interessado, vende pelo preço que oferecerem, porque não se pode dar ao luxo de perder uma oportunidade. Oito em cada dez pessoas da sua comunidade, vivem em situação de pobreza. Olha com injustiça para o plágio das suas peças, porque sabe que muitas das vezes vão ser copiados, sem benefício para quem os criou. Foi o caso da Zara, que já é a segunda vez que abusa dos bordados de Aguacatenango, com impunidade. Só desde 2012 a 2017, oito marcas internacionais usaram o património cultural da vila, sem pagar. E é assim que os grandes vão enriquecendo, e os pequenos que trabalham o produto genuíno, vão ficando cada vez mais no limiar da pobreza.

 

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Para terminar, como disse em entrevista o estilista Dries Von Noten ao jornal Independente:

“Podes fazer o que quiseres. Porém, quando mexes no sagrado, no religioso, tens de ter cuidado. Não é apenas um objeto, uma coisa. Há que ser honesto com esse objeto; creio que há muitas maneiras de evitar não ter de seguir o caminho do plágio.” Sensibilidade que faltou a Tory Burch, quando tomou a nossa poveira como dela.

A Camisola Poveira é nossa!

Maria João Rafael

Consultora de Imagem

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