O luto das crianças: Como ajudá-las?
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O luto das crianças: Como ajudá-las?

A morte é uma perda avassaladora, uma ferida que custa a sarar. Os mais pequenos sofrem e têm dificuldades em lidar com emoções tão esmagadoras. A tristeza, a culpa, a raiva, o medo.

A mãe morreu. O pai morreu. O avô partiu. A avó já não está cá. Um irmão ou uma irmã deixaram de existir. Não é possível. Não é justo. Não faz sentido. Não aconteceu. Tanta tristeza, tanta raiva, tanta revolta. As crianças e o seu luto. Há todo um processo pela frente que deve ser feito com honestidade e sem eufemismos. Sobretudo agora, numa altura tão dolorosa, com números nunca vistos de mortes diárias, com uma pandemia difícil de explicar, difícil de digerir. Por cada perda para o novo coronavírus, ou para o que quer que seja, há uma família que chora. Muitas com crianças de várias idades.

As palavras custam a sair num momento de luto e a tristeza acaba por traduzir-se em comportamentos, na revolta, na negação, no medo. Inês Afonso Marques, psicóloga clínica, psicoterapeuta infantojuvenil, refere que é preciso atenção a modificações comportamentais e emocionais. O impacto de uma perda pode manifestar-se em momentos diferentes e de formas distintas. “A relação com o sucedido, com a pessoa que perdeu, com a forma como os adultos estão a reagir, e a sua fase de desenvolvimento, influenciam o processo de luto”, explica a coordenadora da área infantojuvenil da Oficina de Psicologia. “As crianças podem sentir-se assustadas e inseguras por sintonizarem emocionalmente com o stresse e o luto dos outros.”

 

Revista Amar - O luto das crianças
Créditos © Ewa Kurowska/Pixabay

 

Dos seis anos ao início da adolescência, há uma melhor compreensão do que é a morte e até curiosidade sobre aspetos físicos e biológicos do que acontece. “No processo de luto, podem surgir alterações de sono e apetite, dificuldades de atenção e alterações de comportamento. A brincadeira continua a ser um veículo para a expressão emocional”, prossegue a psicóloga clínica. Na adolescência, acrescenta, “há uma perceção mais madura sobre a morte e a mortalidade, compreendendo o seu caráter irreversível. Numa situação de perda, podem tentar negar a realidade, inibindo a expressão das emoções.” A culpa, a raiva e o medo podem surgir.
Cada criança, sua dor. Não há uma maneira única de expressar o sofrimento. Num momento, um choro intenso, no minuto seguinte, uma alegre brincadeira. Catarina Mexia, psicóloga clínica e terapeuta familiar, enquadra estas alterações. “Esta mudança no estado de humor não significa que não esteja triste ou que o seu sofrimento tenha chegado ao fim. Tal como os adultos, as crianças têm maneiras diferentes de lidar com o sofrimento e brincar pode ser um mecanismo de defesa para evitar serem invadidas por esse sentimento avassalador.” É normal também sentirem-se deprimidas, ansiosas, culpadas ou zangadas com a pessoa que morreu ou com quem está à sua volta.”

Os mais novos não têm grelhas, não têm referências, para processar uma perda tão dolorosa. E um vírus que virou o Mundo do avesso com tantas mortes não ajuda. Segundo José Carlos Rocha, psicólogo clínico, diretor do Centro de Psicologia do Trauma e do Luto, formador e investigador na área da saúde mental, pela Europa já se fala nos direitos que as crianças devem ter num processo de luto. Direito à informação sobre factos, sobre o que aconteceu. Direito a saber o que são emoções normais num processo de luto. Tudo isso tem de ser providenciado por adultos suficientemente estáveis. “Não deve haver ambivalência em relação à informação, não deve haver receio de esclarecer a criança, mesmo sobre alguns detalhes da morte”, vinca. Os mais pequenos precisam de encontrar palavras para comunicar o que sentem.

Dar significado e gerir memórias

A ligação com a pessoa que morre faz toda a diferença e os papéis têm de ser reajustados porque a criança perde alguém que tinha um peso enorme na sua vida. Os pais, a família, a escola, os amigos devem estar atentos às dificuldades e aos sinais que persistam. Crianças e adolescentes podem ter pesadelos, pensamentos intrusivos, imagens muito concretas ligadas à própria morte, sentirem-se mais irritados, com maior dificuldade em cumprir algumas regras.

Uma criança com um ou dois anos não consegue compreender o conceito de morte, mas pode reagir às emoções e aos processos de luto dos adultos. “Dos três aos cinco anos, têm uma visão limitada da morte, não a compreendem como um processo generalizado a todos os seres humanos”, adianta Inês Afonso Marques. Nestas faixas etárias, há alterações temporárias que se podem manifestar de várias formas: retrocesso no controlo dos esfíncteres, mudanças no sono e no apetite, maior irritabilidade, pedidos constantes de atenção, verbalização dos medos.

“Muito frequentemente, há problemas de aprendizagem na fase subsequente, mas que podem perdurar. Dificuldade em confiar nos próprios adultos, dificuldades em aceitar o que aconteceu, sensação de injustiça, de revolta, amargura, zanga. Sentem-se adormecidos emocionalmente”, observa José Carlos Rocha. “Muitas vezes, há dificuldade em compreender o que está a sentir ou a perceção de que os outros não compreendem o que está a sentir, uma sensação de vergonha.” Nesse sentido, é necessário”, sustenta, “otimizar a capacidade de a criança gerir memórias, emoções, dar significado e comunicar aquilo que aconteceu”.

Crianças mais pequenas podem regredir em comportamentos já adquiridos, podem voltar a fazer chichi na cama ou falar à bebé, por exemplo. De acordo com Catarina Mexia, ajudar a criança a lidar com a morte implica que, antecipadamente, o adulto tenha sido capaz de fazer certas coisas. “Tomar consciência, aceitar e lidar com o seu estado emocional. Mostrar-se triste é aceitável, normal e congruente para a criança.” É importante transmitir conforto e segurança. “E procurar informação para adequar a interação ao nível do desenvolvimento da sua criança”, frisa. Inês Afonso Marques também sublinha este ponto. “As crianças procurarão nos adultos pistas para que se sintam mais tranquilas e seguras.”

A maioria dos estudos científicos mostra que, de facto, a forma como os adultos lidam com a própria dor tem muito impacto no luto da criança. Com dificuldades acrescidas pelas circunstâncias, pelas perguntas que continuam sem respostas, por uma pandemia que tantas perdas tem provocado. Emanuel Santos, psicólogo clínico, especialista em tratamento comportamental e cognitivo de crianças e adolescentes, realça que “é necessário que os adultos também cuidem de si, de forma a estarem emocionalmente disponíveis para responderem às necessidades da criança”. É necessário explicar o que é morte com exemplos do quotidiano, dizer a verdade de forma adequada à idade, reconhecer e validar o sofrimento dos mais novos, escutar com empatia. “É de suma importância que os adultos possam explicar à criança que a sua tristeza é real e normal nesta situação e que, com o tempo, ela se vai sentir menos triste”, repara o psicólogo clínico.

Sem eufemismos e explicações sinceras

Como ajudar? Há várias estratégias. Catarina Mexia enfatiza a necessidade de adequar respostas às idades e evitar eufemismo para falar da perda. “Muitas vezes, ouvimos a referência ao sono como equivalente da morte. Associações como esta devem ser evitadas. Além de potencializar os medos, complicam o processo de desenvolvimento de estratégias necessárias no futuro.”

“Não contarmos uma perda poderá levar a que a criança se sinta excluída ou perca confiança, bem como dificultar a elaboração da perda, o processo de luto, que terá de acontecer nalgum momento”, diz Inês Afonso Marques. É fundamental ajudar a criança a reconhecer o que sente, dar-lhe nome, ter pistas para lidar com o que está a sentir. Nas crianças mais novas, o recurso ao desenho e à escrita são formas ajustadas de exprimir emoções.

Os adultos têm de estar preparados para questões e para esclarecer o melhor que conseguirem, para não haver ideias erradas, e não devem subestimar o assunto porque supostamente a criança não irá compreender. Sejam quais forem as circunstâncias, seja em que contexto for. Para a psicóloga clínica, “perguntar o que a criança sabe permite ter uma perspetiva da informação que ela dispõe, possibilitando corrigir algumas ideias erradas e dosear a informação que se transmite”.

A noção da vida após a morte, que varia, é também um aspeto a ter em consideração. “Em famílias onde existem crenças que explicam a vida após a morte, estas podem ser úteis para confortar a criança. Noutras, em que não as há, a ideia de que o ente querido não desaparece enquanto a sua memória for preservada, que ele ‘estará sempre no nosso coração’, também ajuda e pode servir de motivo para elaborar álbuns de memórias com a participação da criança”, assinala Catarina Mexia.

“As crianças são mais rápidas a evoluir no processo de luto, mas quando as dificuldades perduram mais dois/três meses, são um sinal de maior dano”, comenta José Carlos Rocha. Há intervenções mais complexas quer numa fase inicial, quer num período mais avançado do processo. Até porque as adversidades na infância, e a perda de alguém é um exemplo, podem ter impacto a longo prazo.
Com o passar do tempo, o processo de luto segue naturalmente e a perda é integrada de forma adaptativa. “É de esperar que a criança seja capaz de retomar a sua rotina e que, com o suporte dos adultos, consiga recuperar o seu bem-estar”, defende Emanuel Santos.

Há, no entanto, sinais de alerta que merecem uma atenção particular. “No geral, podemos considerar que se deve pedir ajuda se a intensidade do sofrimento se prolonga no tempo sem diminuir”, avisa o psicólogo. Alterações como fobias persistentes, medo do escuro, recusa em ficar sozinho, medo exagerado de que algo de mal aconteça a si ou a uma pessoa próxima, bem como pensamentos recorrentes sobre a morte, merecem preocupação. “No contexto social, se a criança se isola dos amigos e dos adultos, perde interesse em atividades que antes realizava, como um desporto, se se recusa a ir ou a permanecer na escola e se, passado algum tempo, o seu desempenho escolar se mantém seriamente afetado, deve-se pedir ajuda especializada”, aconselha Emanuel Santos. Uma perda é sempre uma perda.

Conselhos e estratégias

  • Aceitar todos os estados emocionais, não ridicularizar o que a criança diz estar a sentir.
  • Ajudar a expressar sentimentos e emoções. Há livros sobre a morte adaptados a várias idades. A leitura conjunta é uma boa forma de transformar emoções em palavras. O recurso ao desenho e à escrita são boas estratégias.
  • Ajudar a lidar com a raiva, tristeza ou culpa.
  • Adequar respostas às idades. Ajustar a linguagem ao nível de desenvolvimento da criança, mantendo uma postura de honestidade.
  • Não utilizar eufemismos.
  • Desviar o assunto passa a mensagem de que se trata de um tema tabu.
  • Não esconder as emoções quando se conta que alguém morreu, mas ter atenção à forma como se expressa o que se sente. A criança procura no adulto alguém que transmite segurança.
  • Não confundir as crianças com a frase feita “ele adormeceu para sempre”, uma vez que pode desenvolver medos no momento de deitar e durante o sono.
  • Manter rotinas porque são fonte de conforto e segurança e permitem à criança perceber o conceito de que a vida continua.
  • Não ocultar a causa da morte, ajustando a informação à idade da criança. Isso ajuda a não criar fantasias ou sentimentos de culpa.
  • Permitir que a criança seja criança, explicar que não precisa de reagir como os adultos.

Sara Dias Oliveira

NM

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