Mais um dia despontava lá para os lados do porto, os autocarros despejavam os passageiros vindos dos arredores da cidade. O fluxo das gentes na baixa da cidade repete-se dia após dia, cada um ocupando o seu lugar na engrenagem de funcionamento desta urbe insular. Forrado o estômago numa esplanada na marginal, o sol já vai alto, hora de por o bólide na estrada a caminho das furnas. O itinerário escolhido junto à costa, a estrada EN1-A1 via estruturante nas deslocações pela ilha micaelense. Uma visita a S. Roque, Lagoa, Água de Pau, uma paragem mais demorada em Vila Franca do Campo. Avistar o ilhéu à distância, palco dos campeonatos de saltos para água, o Red Bull Cliff Diving. Um lugar paradisíaco onde as ondas do mar marulham de forma peculiar nos calhaus rolados durante séculos.
Link: https://youtu.be/JM2Dk8d37tg
A parte da manhã tinha sido destinada a percorrer um trilho pedestre Praia – Lagoa do Fogo. A intenção esmoreceu a quando da consulta da informação precisa sobre o trilho, um percurso circular, grau de dificuldade médio, numa extensão de 11 km com a duração de 4 horas. Sem roupa e calçado adequado para caminhada, a sua extensão e duração fizeram o resto, a crónica de uma desistência anunciada. Cancelada a caminhada, a hora de almoço aproximava-se vertiginosamente a viagem prosseguia em direção à Lagoa das Furnas. Uma subida acentuada rivalizou com uma descida pronunciada atá à lagoa das Furnas, as árvores frondosas sombreavam a nossa passagem na estrada, um misto de alcatrão e empedrado.
Comprado o ingresso na lagoa, estacionado o veículo, ao longe avistei as primeiras fumarolas.
O raizame à flor da terra anunciava a elevada temperatura do chão por nós pisado nos percursos devidamente assinalados, onde a sinalética destacava a alta temperatura da água que brotava borbulhante do interior da terra. Rodeados de abruptas vertentes montanhosas, pude fruir da flora exuberante e da fauna abundante nas margens da lagoa. Uma visita rápida ao chão onde o cozido das furnas estava enterrado em lenta cozedura, cada buraco exibia a placa do restaurante ou casa de pasto associado. O nome Tony’s ficou–me na retina, um nome anglo-saxónico como estratégia de marketing de venda, apropriado nos Açores pelo enorme ligação das gentes do arquipélago ao continente norte americano.
Já com um ratito no estômago, depressa chegamos às Furnas, o cheiro intenso a enxofre impregnava o ar, as ruas cheias de curiosos de telemóveis em punho, no registo desta sétima maravilha da natureza. À venda os bolos Levêdos das Furnas, uma breve explicação da doceira, um pacote transacionado para mais tarde, na hora do lanche alimentar a gula dos sabores.
Uma volta apeada pela vila proporcionou a descoberta de recantos encantadores, um extremo cuidado com a manutenção e arranjo dos espaços verdes, ruas imaculadas, sinalização objetiva. Antes da degustação do cozido das Furnas, uma espreitadela no Parque Terra Nostra e na poça da Dona Beija, locais incontornáveis a visitar nesta localidade.
Já à mesa no Tony´s, após uma espera de 20’, uma simpatia de empregada tira o pedido sem perguntar o queremos, o nosso linguajar atraiçoou-nos, a maioria dos continentais só pedem o famoso cozido. A refeição foi acompanhado com um vinho branco maçanita verdelho original da Ilha do Pico, como sobremesa um pudim de maracujá. Saciado o corpo divinamente, num breve passeio antes de regressar à estrada, um momento de reflexão na Igreja de Nossa Senhora da Alegria, uma arquitetura simples.
Com enorme vontade de permanecer neste paraíso, à beira da lagoa das furnas fomos encontrar uma história de amor, a construção duma igreja por José do Canto, em consequência de um voto formulado pela doença de sua esposa. José do Canto (1820-1898) foi um homem rico, culto e amante da natureza. No seu testamento reza:
“Tendo feito, durante a maior gravidade da moléstia de minha esposa, em 1854, o voto de edificar uma pequena capela da invocação de Nossa Senhora das Vitórias, e não havendo realizado ainda o meu propósito por circunstâncias alheias à minha vontade, ordeno que se faça a dita edificação, no caso que ao tempo da minha morte não esteja feita, no sítio que havia escolhido, junto da Lagoa das Furnas, com aquela decência, e boa disposição em que eu, se vivo fora, a teria edificado.”
Situada na margem poente da Lagoa das Furnas, refletindo-se nas suas águas, é um impressionante exemplar do estilo neogótico, único em todo o arquipélago, onde se encontra sepultado este ilustre açoriano amante da natureza.
No regresso a Ponta Delgada, o ocaso a poente apresentava os primeiros vestígios dum lento anoitecer, faltava avistar lá do alto a Lagoa do Fogo, o alfa e o ómega deste dia tão intenso. Numa corrida contra o tempo escalamos a vertente numa estrada sinuosa, uma última fotografia ao entardecer valeu o esforço.
O resto da noite foi preenchida com um repasto na Taberna do Açor, começando com uma Sopa de Peixe à Pescador (no Pão), uma tábua de queijos e enchidos e uma tigelada regional à sobremesa, excelente local onde completámos o cardápio das iguarias insulares.
Na última manhã em Ponta Delgada, uma derradeira espreitadela pela baixa da cidade, por ruelas paralelas e perpendiculares ao porto. Avistado o forte e ladeada a estátua do ilustre Teófilo de Braga, uma visita às igrejas requintadamente decoradas com a talha dourada e arte sacra. Uma assume um particular destaque, a igreja e o convento da Esperança.
Ambos datam do século XVI, tendo sofrido alterações nos séculos posteriores, albergando a famosa imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, apresentando um fabuloso conjunto de adereços em ouro e pedras preciosas do século XVIII, e associado à maior festividade da cidade. A Igreja apresenta um rico interior, profusamente decorado de talha dourada, pinturas de Manuel Pinheiro Moreira e azulejaria do século XVIII e outra mais recente. O Convento da Esperança é também conhecido por ter sido no muro exterior da sua cerca, num banco de jardim assinalado por uma âncora, que em 1891 se suicidou o poeta Antero de Quental.
Como despedida deixo um excerto do primeiro capítulo do livro Gente Feliz com Lágrimas do escritor açoriano João de Melo. Uma singela homenagem a toda diáspora das gentes dos Açores, espalhada pelo mundo e em particular no Canadá e Estados Unidos da América que um dia tiveram que partir.
“Quando largaram da doca – e o focinho cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas, rumo a Lisboa – havia também a mesma chuva ácida do princípio da noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas vacas ao cais de embarque, sendo elas destinadas aos matadouros continentais. E o pranto de muita gente que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo, o qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar. Depois um e outro viram a Ilha ir fenecendo na distância das luzes enevoadas e extinguir-se aos poucos, submersa pelos véus de cinza que se desprendiam das nuvens.”
Carlos Cruchinho
Licenciado no ensino da História e Ciências Sociais
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