O lago não é o mar
CrónicasToronto

O lago não é o mar

revista amar - O lago não é o mar - Vista da cidade
Créditos © Manuela Marujo

 

Apercebo-me, com bastante frequência, ser um privilégio viver em Toronto, cidade localizada à beira do vasto Lago Ontário. O mês de Abril é dedicado à poesia no Canadá – evoco Fátima Toste, autora luso-canadiana que, num dos seus poemas intitulado “O lago não é o mar” escreve numa das quadras: “Falta-lhe as algas marinhas/Falta-lhe as ondas rolando/Pra embalar saudades minhas/Que p’lo mar estão suspirando.” Identifico-me, sem dúvida, e sinto igualmente essa falha, assim descrita de forma poética. Ao mesmo tempo, não posso deixar de reconhecer a atração profunda pelo azul das águas que me tranquiliza, pelo brilho do sol que nelas se reflete, animando-me o espírito, e pela vida animal de patos e gaivotas, traços duma natureza ainda pura.

Vivo na Baixa da cidade, e é natural que muitas das minhas caminhadas me conduzam ao lago. Atenta, observo as mudanças que se têm dado nas suas margens, ao longo dos anos. Prezo o empenho do governo e de iniciativas privadas que têm melhorado e valorizado o espaço da “harbourfront” e desse modo contribuído para divulgar, sob múltiplas formas, eventos e factos relevantes da história do país ligados à água – desde os primeiros contactos entre os povos indígenas e colonizadores, ao desembarque de tropas, à chegada de novos imigrantes e outros.

Num dos meus passeios recentes, depois de atravessar o “Little Norway Park”, na vizinhança do quase despercebido e histórico “Fort York”, deparei-me, ao fundo da Bathurst Street, com o “Ireland Park” de que nunca ouvira falar. Está localizado à beira do lago, a leste do túnel que leva ao aeroporto da ilha, Billy Bishop.

 

revista amar - O lago não é o mar - - Fort York
Créditos © Manuela Marujo
revista amar - O lago não é o mar - Fort YorkFort York 3
Créditos © Manuela Marujo

 

Protegida por três silos gigantescos de cereais, agora inoperantes, ergue-se uma parede fragmentada de pedras de calcário negro, que enquadra um espaço onde outros fragmentos de pedra e esculturas de bronze foram artisticamente dispostos. A sensação é a de termos entrado num lugar sagrado. Comovi-me com as expressões de dor e sofrimento que as cinco estátuas de bronze, do escultor irlandês Rowan Gillespie, retratam. Este conjunto de figuras, intitulado “A chegada”, simboliza a vinda dos 38.000 irlandeses que procuraram refúgio no Canadá entre 1847-1852.

 

revista amar - O lago não é o mar - - Parede
Créditos © Manuela Marujo
revista amar - O lago não é o mar - - Parede
Créditos © Manuela Marujo

 

O ano de 1847 marca a maior catástrofe humanitária do século XIX, a “Grande Fome” da Irlanda, em que um milhão de pessoas morreu por falta de alimento. Nem todos os que procuraram refúgio no Canadá conseguiram sobreviver. Foi ao desembarcar na Front Street, nessa altura ainda a limitar o lago, que os irlandeses doentes com tifo e cólera ali pereceram, em “barracas da febre”, onde ficavam de quarentena. Na parede de pedras negras do “Ireland Park” estão gravados os nomes das 675 vítimas, para que a sua memória não se perca.

 

revista amar - O lago não é o mar - Vista geral do parque
Créditos © Manuela Marujo
revista amar - O lago não é o mar - cadaver
Créditos © Manuela Marujo
revista amar - O lago não é o mar - - Gravida
Créditos © Manuela Marujo

 

Não foi difícil identificar vários poetas irlandeses que escreveram sobre esse desastre terrível que marca a história da Irlanda. Escolhi a tradução do poema “Quarentena”, da poetisa Eavan Boland de que transcrevo excertos: “Na pior hora da pior estação/do pior ano de todo um povo/ Um homem partiu… com a mulher/ de manhã ambos foram encontrados mortos/ De frio. De fome. Das toxinas de toda uma história./Mas os pés dela estavam aninhados no peito dele./O calor final da sua carne foi presente para ela./ Nunca deixe um poema de amor chegar a esse fim./ Sua morte juntos no inverno de 1847.”

 

revista amar - O lago não é o mar - Norway Park 2
Créditos © Manuela Marujo
Créditos © Manuela Marujo
revista amar - O lago não é o mar - Norway park 3
Créditos © Manuela Marujo

 

Do “Ireland Park”, a vista para a cidade é muito bonita, dada a contínua transformação de Toronto com inovadores projetos arquitetónicos. Aconselho a parar no “Little Norway Park”, na ida ou no regresso, para admirar uma oferta da Noruega ao Canadá e conhecer as razões desse gesto. Nesse espaço, ergue-se também um totem belíssimo que foi esculpido num cedro com 700 anos, por um grupo de artistas indígenas da Columbia Britânica sob a orientação de Georgana Maloff. Foi ali colocado, a 13 de outubro de 1981, com a ajuda de 300 voluntários. Rodeado de canteiros de flores, com um banco de jardim onde nos podemos sentar a admirar a obra de arte, serve de refúgio perfeito aos esquilos do parque.

Apesar de partilhar da mesma voz de Fátima Toste quando afirma que “o lago não é o mar”, o fascínio dos dois povoará, para sempre, o meu imaginário.

Manuela Marujo

Professora Emérita da Universidade de Toronto

Redes Sociais - Comentários

Botão Voltar ao Topo