Vila Madeiro - Penamacor: A tradição do madeiro
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Vila Madeiro – Penamacor: A tradição do madeiro

Nestes dias mais cinzentos a melancolia instala-se, a lareira faz-nos companhia. A passagem do tempo lento acompanhado por memórias, umas mais recentes, outras mais longínquas, no efémero desta vida breve. As recordações surgem em cada recanto do lugar a que chamamos lar, um objeto, uma fotografia numa moldura, uma modinha cantada enquanto arrumamos uns papéis. Bem em destaque, a moldura com a fotografia da malta de 68, o grupo de mancebos que arrancou e transportou o madeiro daquele ano para o adro da igreja. Uma tradição secular nas beiras e em Penamacor em particular. Um acontecimento marcante na nossa vida e na comunidade a cada natal.

Revista Amar - Vila Madeiro - Penamacor - A tradição do madeiro - Carlos Cruchinho (1)
Créditos: Carlos Cruchinho

 

A génese do madeiro

O aconchego duma fogueira, ancestral reminiscência do solstício de inverno, uma festividade pagã, cristianizada pela igreja católica, sobre o pretexto de aquecer a vinda do menino Jesus. Geralmente é ateado perto da meia noite do dia 24 de dezembro. Quando os sinos repicam, muitos são aqueles que acorrem ao adro da igreja para ver os enormes troncos de sobro e azinho a arder. Mas para esse momento acontecer, todo um trabalho hercúleo terá que ser feito pelos rapazes da localidade, os que nesse ano foram às “sortes” ou viram o seu nome no edital público para ir inspeção militar. Ir às “sortes” era o termo usado para o processo de seleção de mancebos, que decorria na sede do município, na presença de uma junta de recrutamento militar, já que poucos escapavam à mobilização. Na voz sábia dos mais velhos “nesse tempo, iam à tropa altos, baixos, cegos, coxos e gagos…”, sequelas de quem viveu a mobilização para a Guerra Colonial (1961-1974). Noutros tempos, mais próximos da atualidade, a inspeção militar decorria em Coimbra, no convento de Santa Clara, um dos muitos ritos de passagem da adolescência para a vida adulta. Uma primeira viagem em solitário sem a tutela dos progenitores à ilharga. É a estes rapazes que compete a organização de toda a logística da festa do madeiro, a comunidade deposita nos seus ombros e braços, a responsabilidade de tratar de tudo com antecedência, para o cumprimento da tradição.

Revista Amar - Vila Madeiro - Penamacor - A tradição do madeiro1 (1)
Créditos: Luís Filipe Martins Cruchinho

 

Rito de passagem

A tradição do madeiro é uma iniciação essencialmente masculina, sendo vedado o acesso ao elemento feminino. No entanto como qualquer tradição secular, a evolução social das comunidades, o protagonismo das mulheres na vida quotidiana, bem como as circunstâncias da falta de rapazes para cumprir a tradição levou a uma mudança nessa premissa. Hoje rapazes e raparigas ombreiam lado a lado na perpetuação dos usos e costumes seculares.

Revista Amar - Vila Madeiro - Penamacor - A tradição do madeiro2 (1)
Créditos: Luís Filipe Martins Cruchinho

 

A festa do madeiro começa alguns dias antes, com o corte das lenhas (azinhos e sobreiras). Em Penamacor tem o seu epílogo durante a noite do dia 7 de dezembro e no dia seguinte, consagrado à Nossa Senhora da Conceição. A lenha mais miúda arde logo nessa noite, posta em grande fogueira para aquecer os ambiente e assar carne, enquanto a mais grossa é levada no dia seguinte para o largo da igreja, onde arderá durante a quadra natalícia.

A tradição

Desde tempos imemoriais que o homem nutre pelo fogo um misto de espanto e fascínio, pela sua inexplicável beleza e cor, o seu poder destrutivo e na sua essência, um conforto contra os elementos. Companheiros há muitos milénios, o fogo preencheu de luz a escuridão da humanidade, onde havia trevas passou a existir a possibilidade da comunidade estender o dia, o convívio entre todos, oportunidade de desenvolver a comunicação e a coesão do grupo.

Revista Amar - Vila Madeiro - Penamacor - A tradição do madeiro3 (1)
Créditos: Luís Filipe Martins Cruchinho

 

No meio rural português, o ritual do madeiro assume um simbolismo próprio de encontro e convívio das pessoas de uma comunidade, acolhendo os forasteiros de uma forma peculiar. Segundo António Cabanas no seu livro Eh, Madeiro! Símbolos e Tradições de Natal, “Durante toda a noite há pessoas à volta da fogueira, rindo, cantando, assando e comendo chouriças e carnes. O garrafão do vinho acompanha e alegra todos os presentes. Em Penamacor, onde a noite natal é vivida com intensidade, cheia de luz e brilho, com serões inesquecíveis, à volta da fogueira do madeiro contam-se histórias e peripécias passadas e cantam-se cantigas em quadra.”
Todos os participantes nesta noite especial relembram o seu ano, recontam as suas aventuras e desventuras no cumprimento da tradição, não faltando os exageros próprios de quem conta um conto, acrescentar um ponto.

 

Ó Madeiro, ó Madeirinho
Habitas na memória ancestral
deste povo raiano,
ó, madeiro, ó madeirinho
quantos troncos e pernadas
tens de azinho.

No dia da Imaculada Conceição
o povo sai à rua em devoção,
para saudar a tua chegada
imponente em procissão.

Os destemidos mancebos
erguem com coragem,
a tua silhueta corpulenta
dobrando o Cabo das Tormentas.

Como um Adamastor
impões respeito no alto da praça,
paredes meias com a igreja de S. Tiago
esperas não causar nenhuma desgraça.

Com missa do galo em fundo
da raia sopra um vento cortante,
em teu redor entoam cânticos
alguns fadistas debutantes.

Com a samarra despida,
o fogueiro atiça o madeiro,
nos idos de dezembro
aqueces qualquer romeiro.

Ó, madeiro, ó madeirinho
já vai longo o serão,
para molhar as gargantas secas
trás lá o vinho do garrafão.

Nas palhinhas deitado
dorme o ungido do senhor,
quando nos aqueces ó madeirinho,
os velhos recuperam o calor.

Uma tradição secular
dispensa a inovação,
mas este ano ó madeirinho
tem paciência e contenta-te,
passas só na televisão.

 

Revista Amar - Vila Madeiro - Penamacor - A tradição do madeiro4 (1)
Créditos: Luís Filipe Martins Cruchinho

 

Ainda segundo António Cabanas no seu livro Eh Madeiro! Símbolos e Tradições de Natal, o madeiro é “Uma tradição comum a grande parte do país, principalmente nas zonas norte e centro, com uma outra variante, o madeiro assume em Penamacor foros de monumentalidade, e dele se orgulha a população, que assiste ao seu arranque e empilhamento. Os mais velhos ao desfilar da procissão dos inúmeros reboques carregados com o madeiro, comentam sempre a quantidade de madeira arrancada, com uma frase lapidar:
– Se fosse como no meu tempo a pá e picareta, não traziam tanto. Era preciso “roubar” muitos carros de bois e juntas de bois para fazer o transporte do nosso madeiro.”

Esta tradição esteve sempre ligada a transgressão consentida, a palavra roubar adquiria um significado diferente, já que o madeiro roubado se destinava a servir o bem comum duma comunidade. Na atualidade, o “roubo” da lenha aos proprietários foi substituído pela abate das árvores doentes das suas propriedades e na plantação de novas plantas, com a finalidade de tornar sustentável esta tradição a longo prazo. Este ano em virtude da pandemia a tradição será interrompida, mas voltará com ainda mais força em 2021. Até lá resta-nos encontrar alternativas ao madeiro. O escritor Miguel Torga no seu livro Novos Contos da Montanha deixa uma sugestão no conto de Natal. Passo a citar, “Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura… Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados.”

Volto a olhar para a fotografia da malta de 68 com uma certa nostalgia, coloco mais um cepo de azinho na lareira.

Carlos Cruchinho

Fontes: 
- In Cabanas, António, Eh! Madeiro!: símbolos e tradições de Natal /; prefácio de Fernando Paulouro; ed. Luís Gomes; edição de texto Joaquim Nabais. - Lisboa: Artemágica, 2008.
- In Torga, Miguel, Novos Contos da Montanha, 14ª edição – Coimbra, 1986.
- Inclui um poema inédito de Carlos Cruchinho.

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