O período dos Descobrimentos é talvez o que traz maior orgulho a Portugal, se por um lado admiramos a coragem da viagem pelo desconhecido e a conquista de novas terras, ao mesmo tempo ignoramos e romantizamos o lado negro do colonialismo. No século XV, foi Portugal que iniciou o tráfico de escravos transatlântico, e no período de 400 anos, raptou, expatriou e escravizou cerca de 5.8 milhões de pessoas de África e da Ásia para serem enviados para o Brasil.
O conceito de raça foi criado para estabelecer uma hierarquia e legitimar o tratamento de certos grupos como inferiores. Gomes de Zurara (um cronista português da Era dos Descobrimentos) criou o conceito de dividir as pessoas em grupos – ainda não referidos como raças – enquanto escrevia a biografia do D. Henrique “O Navegador”. Alguns consideram que Zurara inventou a “raça africana” quando descreveu as pessoas que estavam a ser vendidas num leilão em Lagos, Portugal. Apesar de diferirem na linguagem, etnia e cor da pele, juntou-os todos num mesmo grupo que precisava de ser salvo pelos “europeus civilizados”.
Este conceito de raça levou à justificação da escravatura transatlântica – não só era uma oportunidade de cimentar o estatuto do país como uma potência global e aumentar a sua riqueza, como também a necessidade de espalhar o Cristianismo e a modernização pelo mundo era vista como uma obrigação moral.
Ao longo dos anos, os líderes portugueses tentaram preservar este sentimento de superioridade. Sob a Ditadura de Salazar (de 1932 a 1968), prevaleceu a teoria de um colonialismo excecional e mais humanos do que o de outros países. Quando a Exposição do Mundo Português ocorreu em Lisboa, em 1940, Salazar usou a oportunidade como um ato pretensioso de propaganda. O Lusotropicalismo promovia a ideia de que o império português era uma única unidade política, espalhada por diversos continentes, multirracial e onde reinava uma coexistência pacifica entre diferentes pessoas e culturas. A forma como Portugal se recorda de factos históricos refere-se à ideia de que o país teve um papel fundamental na civilização, lutando contra o primitivismo e contribuindo para o desenvolvimento daquelas sociedades. Aqui está a fundação da ideia que tem vindo a ser perpetuada – um colonialismo benigno, onde Portugal era o bom rapaz.
Contudo, nas colónias era evidente uma realidade bem diferente. Os súbditos indígenas, dominados pelos portugueses, tinham um estatuto inferior e eram considerados menos civilizados. A única forma de não-brancos terem acesso à educação e outros privilégios nas colónias era através da renúncia da sua própria cultura, da adoção do Catolicismo, da aprendizagem da língua e costumes portugueses, de maneira a atingirem o estatuto de “assimilados”. A exploração e trabalho forçado eram práticas diárias normalizada nas colónias.
Portugal foi um dos primeiros países a implementar a escravatura e um dos últimos a colher os seus frutos. Enquanto o mundo admitia a dura realidade e a dor que tinham infligido. Portugal agarrava-se cada vez mais às suas colónias. Em 1960, durante os movimentos independentistas, Salazar ordenou a construção do Padrão dos Descobrimentos para manter os ideais daquele tempo vivos. Localizado no Rio Tagus em Lisboa, o monumento tem à sua frente a Rosa-dos-Ventos – um presente do regime de Apartheid da África do Sul oferecido à ditadura portuguesa.
Ainda há pouco mais de 40 anos, Portugal estava em guerra para tentar reprimir os movimentos independentistas das colónias africanas. Deixando Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau num estado de devastação depois de quase 20 anos de guerra, massacres e domínio pela força, seguido da repatriação dos Portugueses que viveram nesses países. Rotulados de retornados, também eles foram sujeitos a atos discriminatórios.
Apesar da proclamação de que Portugal não é racista, mas de que existe racismo em Portugal – pode um país, que durante séculos da sua história, viu certos povos como sendo inferiores, ter outra visão hoje?
Na legislação, nos tribunais, nos sistemas de saúde e de educação não existe conteúdo racista ou de segregação e inclusive, a Constituição proíbe manifestações de racismo, e é aí que se apoia a maioria daqueles que não querem considerar o seu país racista. Contudo, a legislação proíbe a discriminação de género, mas continuamos a ser um país machista, onde as mulheres lutam contra a subalternização económica e social e onde a violência doméstica é um dos maiores problemas sociais. Portanto, não basta olhar para a legislação para compreender o que a sociedade sente. A ascensão da extrema-direita e o movimento de Black Lives Matter vieram intensificar esta discussão. E a própria política de direita considera que este tema é um golpe sensacionalista de esquerda.
Um país à beira do Atlântico, com ótimo clima, repleto de história e conquistas, com uma gastronomia incrível e pessoas trabalhadores e respeitadas – alguns chamariam de paraíso, mais ainda não é. As periferias das grandes cidades continuam a mostrar a sua pobreza evidente, onde se marginalizam as minorias e onde o contacto com a polícia nem sempre acontece da melhor forma. E é aqui que se põe todos no mesmo saco, se um rouba, são todos ladrões, pelo menos na visão de André Ventura, o líder do partido de extrema-direita Chega. E o crescimento da sua popularidade é a prova de que o racismo se encontra de boa saúde, da intolerância e da queda dos valores da democracia.
Segundo um estudo do European Social Survey, mais de 60% dos portugueses manifestam crenças racistas. No entanto, de 2009 a 2018, o Ministério da Justiça não registou qualquer condenação por racismo. E o racismo está presente até na nossa linguagem, que muitas vezes utilizamos sem consciência da sua conotação, com frases como “E eu sou preto?” quando nos ignoram, por exemplo. Então, o que é que podemos dizer de um país que criminaliza o racismo, mas não o condena?
No caso do estudante cabo-verdiano Luís Giovani que foi morto no final de 2019, espancado violentamente por um grupo de jovens, o Ministério Público acusou os sete suspeitos de homicídio qualificado, mas concluiu que o crime não tinha motivação racial. Em 2020, uma mulher foi agredida por agentes da PSP depois de uma discussão causada pela falta de título de transporte. No mês seguinte, duas mulheres brasileiras foram atacadas pela polícia à porta de uma discoteca. E se pode ser discutível se estes casos tinham teor racista… Ainda nesse mês, o jogador de futebol do FC Porto, Moussa Marega abandonou o relvado a meio do jogo com o Vitória de Guimarães depois dos adeptos deste clube gritarem insultos racistas contra o atleta.
Alguns meses mais tarde, surgiu outro caso que foi considerado a gota de água nesta série de conflitos e indignação; a morte do ator negro Bruno Candé. O ator foi assassinado com quatro tiros à queima-roupa, em plena luz do dia, numa avenida movimentada da periferia de Lisboa. Testemunhas garantem que três dias antes tinha sido ameaçado de morte e teriam surtido vários insultos racistas: “Preto, vai para a tua terra”; “volta para a sanzala”. O homicida foi Evaristo Marinho, de 76 anos, que tinha prestado serviço militar em Angola, entre 1966 e 1968. Ao ser admitido na prisão ainda disse “Em Angola, matei vários como este”.
Existem muitos outros exemplos. Se Portugal é um país racista ou não é um tema aberto para discussão, mas uma coisa é certa, Portugal tem sido um país tolerante com o racismo.
Até recentemente, Portugal falhava na apresentação de uma visão objetiva dos acontecimentos. Nunca existiu uma referência explicita, um memorial ou monumento que reconhecesse os milhões de vidas que foram afetadas pela escravatura. Por outro lado, existem inúmeras estátuas e monumentos dedicados aos navegadores e padres missionários responsáveis pela conversão de Africanos e Indígenas para o Catolicismo, ou de soldados que lutaram na guerra contra as colónias. Finalmente, em 2017, a Djass Associação de Adro-descendentes (ONG) ganhou, por voto popular, o acesso a fundos públicos, dando oportunidade à comunidade negra de contar a sua história – o que viveram e resistiram.
Os fundos foram utilizados para desenhar o monumento “Plantação – Prosperidade e Pesadelo”, pelo artista angolano Kiluanji Kia Henda. Pretende consciencializar, criar empatia e refletir sobre as questões da escravatura, colonialismo e pós-colonialismo. Kiluanji Kia Henda sublinha “O mundo moderno não existiria se não fosse pela escravização. A modernidade que se vê aqui foi construída às costas da população negra. É importante que exista consciencialização sobre isso.” O memorial será instalado no Campo das Cebolas, em Lisboa, e prevê-se que será inaugurado este ano. Composto por filas de canas de açúcar em alumínio preto, cada uma com três metros de altura, esta obra simboliza um passado trágico, mas, esperemos, um futuro prospero.
A História tem sido apresentada e ensinada nas escolas parcialmente, através de uma visão Eurocêntrica. Portugal tem vindo a ignorar parte da sua história porque vai contra a sua identidade nacional. É fundamental para todos os portugueses que amplifiquem e deem podem às vozes do passado, para que possamos aprender com ele. Não se trata de impor culpa, mas sim de refletir sobre o nosso passado e traçar o caminho que queremos para o futuro.
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