A obrigação de mudar
A vida depois do primeiro ano da Covid-19. A opinião de Valter Hugo Mãe.
Para a Biologia, e desde logo como Charles Darwin a definiu na sua importante teoria, a evolução das espécies significa mudança e não exactamente uma melhoria. A Natureza impõe a mutação contínua, como adaptação impossível de se deter, mas não garante virmos a ser melhores. Isto implica que, por definição e a todo o tempo, estejamos a lidar com um desafio que se coloca essencialmente como neutro. Cabe à magnífica oportunidade do uso da razão investir no sentido de progredirmos. É na razão, na vasta ciência e cultura, que radicam as esperanças. Assim, sendo inelutável mudar, o ritmo com que isso acontece não obedece a ciclos definidos e o paradigma fundamental com que nos identificamos não se altera com facilidade. Por maiores que sejam as fracturas nos nossos hábitos, a alteração das disciplinas de consciência são escassas na já longa História. Quer dizer, depois de experiências extremas podem verificar-se alterações notórias nas conjunturas das sociedades mas isso não implica necessariamente com a sanação do mal que lhes deu origem, pode não implicar uma aprendizagem. Exemplo acabado é o Holocausto e o regresso cada vez mais desumano do nazismo.
Vínhamos eufóricos investindo no presente. Antes do abate da pandemia sobre o Mundo, a urgência era a ordem do dia e não havia espaço senão para o imediato. O capitalismo sem pudor vem subjugando a lógica dos nossos interesses, obrigando todas as políticas à resposta ávida para não perder a corrida que segue como desenfreada. A pandemia, aberrante, vem contudo impor uma suspensão brusca na sobrevivência de enfoque exclusivamente económico e, ao questionar o sistema, reactiva o futuro, como diria Franco Berardi.
Confrontados com a mentira e desmentidos constantes, não haver verdade é a nova normalidade. (março 2020)
Subitamente, todos detemos o presente para imaginar o futuro. Se isto nos é imposto pela ameaça e corresponde sobretudo ao tamanho do medo, também é verdade que pode ser a maior fortuna que a pandemia teria para trazer ao Planeta. Imaginando o futuro podemos não só criar uma estratégia de sobrevivência como identificar o modo de melhorar. Porque, como sabemos, haveremos de evoluir para outras circunstâncias, o importante é saber se a ciência e a cultura nos bastarão para decidirmos por alguma correcção, algo que possa ser visto como conquista de maior paridade e justiça num novo modelo social.
É simples verificar como a lógica, ao fim de um ano de vivermos acossados pelo vírus, continua a mesma. Com todos os prejuízos para a economia, ainda é a economia que decide no teatro social. Poderíamos pressupor que encontrada a tão milagrosa vacina ela se ofereceria ao Mundo como glorificação grata da vida, uma espécie de triunfo da humanidade perante a abissal mordedura da morte. No entanto, o que se observa é a distribuição avara do medicamento que chega aos que o podem comprar e que se produz com o mesmo fito de gerar lucro com que se produzem as canetas Montblanc. É um lado da economia a ver definhar o outro lado da economia. Sem piedade.
Não se alterou o princípio imperativo do lucro, votando os países mais pobres a uma grotesca exclusão, como se excluídos da própria humanidade. O capitalismo sem pudor não suportaria abrir o precedente da franca comunhão de um bem tão pretendido quanto uma vacina em tempos de pandemia. Para que cheguemos à entrega da fórmula a todos os povos, como um linear cumprimento do direito à vida, vai ser necessário que os laboratórios e seus alarves detentores hajam já multiplicado por um milhão os investimentos efectuados. Ainda tão dentro deste tempo de adoecer e morrer, nem por isso se detectam sinais de alguma aprendizagem no sentido de preferir a vida de todos ao lucro de alguns.
Existem três pontos fundamentais para a leitura moral do que nos acontece. O primeiro passa pela observação franca da desigualdade entre uns e outros. Perante um inimigo comum, partimos em situação de uma desigualdade obscena. O segundo passa pela sobranceria humana que estabelece o Planeta como uma sua presa, animal extorsionário que não pretende comunhão mas império. O terceiro tem que ver com a evidência da eficácia da cooperação. Só havemos de estar seguros se estivermos todos seguros. O vírus importa-se nada com predicados financeiros das suas vítimas, o modo como opera só se vê boicotado se todos cumprirmos uma essencial higiene e um ritual cuidado de afastamento. A natureza vai sempre levar-nos à questão de saber se nos tratamos como iguais, respeitamos o Planeta, e nos mantemos unidos contra o que nos preda. Enquanto isto não acontecer, não existe justiça e jamais será alcançada a segurança. Estaremos sempre em perigo até que o perigo seja por toda a parte.
Mantenho uma posição crítica mas sei que haverá futuro. Estaremos todos impelidos, até por folia, para a novidade. Quando pudermos normalizar os encontros vamos estar predispostos a tudo quanto nos convença de ser novo e melhor. Tudo quanto explore a ideia de construção de outra vida, como se catássemos sinais de aprendizagem. Mas suponho que o futuro será sobretudo aquilo que o mercado quiser, esse jogo que se comove apenas com o que se conta em moeda. O mercado vai manter a sua mesmíssima lógica, o capitalismo sempre sendo a solução para o capitalismo, e haverá de nos entreter com aparências mas não sanará o inquinado das intenções, não nos impedirá de, na próxima pandemia, estarmos outra vez na penúria moral. O que mudará este paradigma ainda não tem nome. Não é possível imaginar esse futuro tão improvável. O mais plausível é voltarmos à mesma leviana festividade suicida, a que esgota o Planeta e enfeita a humanidade de produtos enquanto se transforma numa massa autómata e perdendo identidade. Deixando nas mãos de uma minoria a ideia magnífica de voltar a inspirar a maioria e caminhar de facto em direcção a uma potenciação da maravilha de todos e cada um.
Escritor – Crónica NM
Redes Sociais - Comentários