A sardinha… uma rainha. Olha a vivinha da costa!
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A sardinha… uma rainha. Olha a vivinha da costa!

 

revista amar - mural do parchal
Mural do Parchal
Créditos © Carlos Cruchinho

 

Em junho nos santos populares ela é rainha, em julho faz parte dos reencontros dos amigos e emigrantes, em agosto assenta arraiais à mesa dos portugueses com uma boa salada de tomate e pimentos assados. A sua degustação em fresco faz soltar o pregão à varina ou será ovarina:

– Olha a vivinha da costa!

Nos fogareiros e nos assadores o abanador aviva a brasa para assar a sardinha e vem sempre à lembrança a antiga expressão “Cada um puxa a brasa à sua sardinha”. Durante muitos séculos a sardinha era considerada o alimento dos pobres. Hoje considerada uma iguaria devido à sua escassez no mar por um lado, devido à sua captura intensiva e à poluição oceânica por outro. Os mais antigos relembram os períodos de fome durante e entre guerras, afirmando com uma tristeza na voz e no olhar que muitas era “Uma sardinha para três!”.
Quem nunca ouviu falar das sardinhas da Póvoa de Varzim, de Matosinhos, da Costa Nova, de Peniche, de Sesimbra e de Portimão. Os barcos zarpam de madrugada para a faina da sardinha, longas horas separam a pesca da sardinha da sua degustação no prato. O seu desembarque das traineiras pelos pescadores, o seu arremate na lota pelos comerciantes. Um ritual secular em que o peixe é vendido em leilão invertido, com os preços a serem anunciados por ordem decrescente, até o comprador interessado o arremate com um tradicional “Chui!”.

“No S. João pinga a sardinha no pão”, nem sempre as sardinhas de junho têm essa gordura e o melhor sabor para os apreciadores deste pitéu nacional. Segundo os especialistas em consumo de pescado, a sardinha deve ser consumida entre os meses de julho e dezembro. A sabedoria popular a prevalecer nos seguintes provérbios “Sardinha de abril, vê-la e deixá-la ir” e “Quem quiser mal à vizinha, dê-lhe em maio uma sardinha, e em agosto, a vindima.”

Na Póvoa de Varzim o escritor Raúl Brandão no seu livro os Pescadores descrevia de forma pormenorizada a azáfama dos pescadores e das suas mulheres no transporte e venda de sardinha na costa portuguesa. Um encanto tamanho da genuinidade das gentes do mar, a certa altura descrevia o seu quotidiano assim:

“Há a gorda e enorme que faísca como prata, e que é logo ali disposta, cabeça para um lado e rabo para o outro, camada de sal e camada de sardinha nos cestos canastreiros; há a mais moída e pequena, 14 que se vende aos montões para a gente pobre, e a despedaçada e calcada que, com as tripas e as cabeças, se aproveita para estrume. Cheira que tresanda. E mais gritos, maior balbúrdia…

– Seis tostões! um quartinho! – Estripam-na, lavam-na em água do mar, dividem-na em grande, média e miúda. Mulheres a escorrer salmoura carregam-na à cabeça e correm para a fábrica com os filhos nus agarrados às saias…”

A faina no mar alimenta as bocas em terra sempre famintas, mas a maioria da sardinha destina-se às fábricas conserveiras da região, outrora o ganha–pão sazonal de ranchos de mulheres assalariadas. A sardinha sempre alimentou a barriga e alma do povo português em fresco ou em conserva, segundo Raul Brandão ela “É uma onda de prata que sai da tinta azul. Cheira a algas e a mar vivo. Impregna-me e trespassa-me. Deixa-me sal nos beiços.” E continua com as suas evidências fruto das suas vivências junto das nossas gentes mais humildes, “Comem-na assada na brasa os trabalhadores da estrada e os homens esfaimados do campo com um pedaço seco de broa. De Inverno é seca, mas pelo S. João pinga no pão. No norte o lavrador espera-a para o jantar: é o seu melhor conduto. Os pobres fregem-na numa gota de azeite, e salgada ou saltando no cesto, fresquinha da barra, viva de Espinho, gorda, antes da desova, sem cabeça e escrunchada, com a guelra em sangue, ou laivos amarelos da salmoura, constitui um manjar para pobres e para ricos. Entra em todas as casas. Há quem goste dela de caldeirada e quem a prefira simplesmente assada deixando cair no lume a gordura que rechina. Há-os que só saboreiam a de lombo gordo e preto, e os que acham muito melhor a miúda, que se chama petinga e que se devora com escama e tudo, afirmando com uma convicção respeitável que a mulher e a sardinha quer-se da pequenina…”

Segundo os dados da PorData a sardinha é a terceira espécie de peixe mais pescado em Portugal apesar das restrições na sua captura e preço médio por quilo em lota.

A viagem prossegue no encalço dos portos de pesca onde a sardinha é rainha. No andarilhar da Costa Nova para Barrelas do almocreve Malhadinhas era produto que não podia faltar no dorso das bestas de carga. O mestre Aquilino descreveu essa demanda da sardinha assim:

“Pois é verdade, a ainda me não picava a barba e já eu, desta Barrelas de cara direita, perdida no calcanhar do mundo atrás de caminhos excomungados, batia até à Costa Nova, à cata de sal, de sardinha e doutros géneros daquelas paragens, que ao tempo se vendiam mais caro que os “poses” da botica. E ia trocá-los pelo azeite, a azeitona, o linho em adeitos (…)”

 

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Ainda hoje, os locais e os veraneantes podem assistir à pesca da sardinha na praia da Vagueira, à arte de pesca costeira artesanal conhecida como Arte Xávega, a qual remonta ao século XIX. Essa arte de pesca caracteriza-se pelo seguinte modus operandi, os pescadores lançam as redes ao mar e cercam os cardumes. Em seguida, alam a rede para a costa, com a ajuda de juntas de bois ou modernos tratores. Nesse momento, homens e mulheres, cooperam na azáfama de estender a rede pelo areal e dela arrancar todo o peixe que insiste em voltar para o mar. A venda do pescado feita logo em plena praia, as sardinhas, as cavalas, os carapaus, os sargos, as douradas de mar, polvos, lulas e chocos. Esta arte de pesca artesanal estará condenada ao desaparecimento em poucos anos? Esperemos continuar a poder disfrutar desta secular atividade piscatória na costa portuguesa, nas praias de Palheiros de Mira, Tocha, Costa de Lavos, Leirosa, Pedrógão, Praia da Vieira.

A próxima etapa da viagem pela história da sardinha segue a caminho de Peniche terra de pescadores e de fortalezas. O início da construção da fortaleza de Peniche remonta ao séc. XVI no reinado de D. João III, atualmente alberga por motivos óbvios, o Museu Nacional da Resistência e Liberdade. Este Museu nasceu do reconhecimento da fortaleza de Peniche enquanto espaço-memória e símbolo maior da luta pela liberdade à escala nacional, com ressonâncias internacionais na luta ancestral e atual pela Democracia e pelo respeito dos Direitos Humanos.

A história que se segue aconteceu entre as paredes da fortaleza de Peniche, os protagonistas, os presos políticos do Estado Novo. Num testemunho relatado numa carta da prisão da autoria de José Magro, a sardinha torna-se uma iguaria de Natal à falta de pescadas para a consoada. A certa altura o prisioneiro escreve assim:

“As grandes festas, todavia, eram o Natal e a Páscoa. Então, sim! Principalmente a ceia respetiva, sem guarda à vista e por nós cozinhada, sempre largamente abundante, se não tinha o sabor familiar era sem dúvida de desabitual alegria e de convívio fraterno. E, já agora, um episódio cómico mais, ligado a tais repastos. Havíamos encarregado o Zé Maria, que tinha conhecimentos na lota de Lisboa, de arranjar grossas pescadas para cozer. Desde muito antes, as pescadas eram já prato do dia da conversa.

– Vê lá, Zé Maria, não haja azar com o peixe!

Mas o amigo, seguro de si e da companheira, assegurava que não. Até que surge a data grande de 24 de Dezembro. A hora da camioneta era ansiosamente aguardada para admirar os bichos. Mas ela chega, é ultrapassada – e nada! O Zé mudava de cor ante os olhos de acusação dos companheiros. Já ninguém abria a boca. Inopinadamente, surge um telegrama para o amigo. Abre-o. Lê. Fica varado.

– Então, Zé? Mudo, passa a outro o papel maldito. Este soletra bem alto e com voz tremula: «Pescadas não há stop. Seguem sardinhas de barrica stop. Beijinhos.»

Passou um mau bocado, o pobre do camarada! Mais tarde tudo se esclareceu. As pescadas sempre haviam chegado. Mas tinham sido cuidadosamente escondidas. E o telegrama fora forjado com habilidade por um grupo de graciosos cruéis.”

À falta do fiel amigo para a consoada, o remédio foi degustar sardinhas de barrica, ou seja, sardinhas de conserva em azeite. Nos dias de hoje, os turistas não só podem apreciar umas belas sardinhas acompanhadas de batata cozida e por uma salada de tomate, pimentos e pepino. Como sobremesa, a doçaria local como os Ésses, Amigos de Peniche e as sardinhas doces, um doce frito com amêndoa, doce de ovos, raspa de limão, canela e doce de gila que simboliza as tripas da sardinha. O formato é de uma sardinha.

A nossa viagem prossegue para sul, a península de Setúbal e a vila de Sesimbra serão as anfitriãs para mais umas histórias ligadas à sardinha com uma das Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa.

As indústrias conserveiras nestas duas localidades revestiam-se de grande importância no tecido empresarial e sempre foram sinónimo de trabalho para as suas gentes. A excelência dos seus produtos conquistou fama e prémios além-fronteiras, sendo as conservas de sardinha as mais apreciadas, embora também se conservassem ainda o atum, cavalas, carapaus pequenos e chaputas.

Alguns testemunhos da época dourada da indústria conserveira em Sesimbra referem que quando a sirene ou a sereia da fábrica tocava, fosse de noite ou de dia, é porque havia peixe a chegar à fábrica.

“Tínhamos de largar tudo e correr para lá”, conta Noémia Leandro, 91 anos, uma das centenas de mulheres que trabalharam na indústria conserveira durante sete décadas. Zélia Amigo, de 78 anos, entrou na fábrica A Primorosa aos 15 anos relembra o rigor exigido a quem laborava nas fábricas, não havia margem para enganos. “Dois homens tomavam conta das entradas e saídas e inspecionavam o nosso trabalho (…). Nem podíamos falar, e ao mínimo barulho éramos repreendidas”.

Noémia Leandro acrescentou ainda que “as funcionárias tinham de ter uma tesoura e um canivete próprios, pois os proprietários apenas davam o avental e o lenço branco de três pontas para a cabeça. Até as tamancas, que eram obrigatórias, eram compradas com o nosso dinheiro. Enquanto havia peixe não se podia parar, eu cheguei a ficar lá dias e noites seguidas e ir apenas a casa dar comer aos meus filhos.”

A nossa viagem está prestes a chegar ao fim, a última paragem Portimão, outrora Vila Nova de Portimão. Um filho da terra, Manuel Teixeira Gomes descreveu-a no seu livro Maria Adelaide assim:

“Poucos dias antes de partir quase passou o dia inteiro na praia, para se despedir do «nosso mar», e fomos logo de manhã cedo para os lados do Nolasco. Desse dia conservo a recordação tão viva como se fosse ontem. Mas haverá expressões adequadas à descrição de dias tais? O mar, de vaga larga, rebentando sobre os rochedos da costa, enchendo de espuma todas aquelas ruínas de castelos fantásticos, nesse dia mais monumentais do que nunca. Mas foi caindo pouco a pouco e à tarde aparecia calmo, claro e cristalino, todo semeado de leixões multicores. À volta, já quase noite, parámos no convento; o rio, em frente a Ferragudo, era de puro lilás que, por toda a bacia se dissipava em gradações de lilás-azulado, sob um céu de inalterável azul, esfumado de fogo. A serra parecia pegada à vila e soltava as pinceladas de púrpura que engrossavam a poente, e agitavam-se em rede que subia pelo céu.”

Quando Manuel Teixeira Gomes embarca a 17 de dezembro de 1923 no paquete holandês “Zeus” rumo a seu autoexílio voluntário em Oran, na Argélia, como despedida deverá ter lançado os olhos momentaneamente para azáfama da descarga da sardinha na Fábrica Feu Hermanos. Na atualidade, a antiga fábrica de conservas deu lugar ao Museu Municipal de Portimão na zona ribeirinha da cidade. O espólio da antiga conserveira mantem-se intacto aconselhando uma visita prolongada pelas várias etapas de transformação da sardinha fresca ao seu envase nas latas de conserva. (museudeportimao.pt)

Após esta longa viagem à beira mar de norte para sul procuro mesa no Restaurante Barca Nova, na lota de Portimão, para degustar a vivinha da costa com o rio Arade verde água aos pés coalhado de traineiras prontas para a faina.

Carlos Cruchinho

Bibliografia consultada:

  • Os Pescadores de RaulBrandao (conservasdeportugal.com)
  • PORDATA – Publicações
  • Caxinas: Um (quase) ensaio – JPN (up.pt)
  • Retratos paisagístico-gastronómicos na obra Aquiliniana (uc.pt)
  • Arte Xávega na Praia da Vagueira – Rota da Bairrada
  • Arquivo – Museu Nacional Resistência e Liberdade (museunacionalresistencialiberdade-peniche.gov.pt)
    Lisboa Conserveira – A indústria conserveira portuguesa (lxconserveira.pt)
  • A indústria conserveira em Sesimbra | Sesimbra é Peixe (sesimbraepeixe.pt)
  • Obras Completas de M. Teixeira Gomes Vol.II – Maria Adelaide (imprensanacional.pt)

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