Um estado de felicidade nos loucos anos 60, 70 e 80…
Nesta vertigem da passagem do tempo, poucos momentos sobram para uma reflexão cuidada sobre a simplicidade da vida, noutros tempos mais recentes. Como testemunha viva desse modus vivendi, considerado agora anacrónico pelas gerações mais jovens, impõe-se porém registar para memória futura esse portuguese way of life. Descomplicado nos pressupostos, arriscado o suficiente, naif por excelência e mobilizador da arte e engenho para formar uma personalidade forte e preparada para enfrentar os desafios do futuro, fazendo o ritual de passagem da infância para a adolescência rumo à vida adulta. Muitos perguntarão como podemos ter sobrevivido a uma vida rodeada de tantos riscos, ameaças e ambiguidades. Então comecemos por desfiar esse rosário, sem claro esperar qualquer indulgência dos mais assertivos e críticos que argumentarão sempre, os tempos mudaram para muito melhor. Será mesmo?
Quem não se lembra que afinal os carros não tinham cintos de segurança, apoios para a cabeça, nem airbags! Viajamos soltos no banco de trás aos saltos e na galhofa. E isso não era perigoso! Os carros não tinham trincos de segurança nas portas. Os defensores da segurança rodoviária afirmarão que seria uma inconsciência manter essa prática, mas apetece-me contrapor, a velocidade média a que se circulava era extremamente baixa, uma ordem parental punha imediatamente cobro a qualquer exagero. Recordo as pequenas viagens em carrinhas de caixa aberta, naquela Toyota Hiace de cabelos ao vento, vivendo uma sensação de liberdade cheia de adrenalina saudável. A disfrutar da paisagem circundante, alargando os horizontes e alimentando o desejo de viajar cada vez mais longe, apropriando-nos do novo mundo.
Como crianças desde o nascimento dormíamos em camas com grades ou sem elas, os brinquedos eram multicores com pecinhas que se soltavam ou no mínimo pintados com umas tintas “duvidosas”, contendo chumbo ou outro veneno qualquer. Isso era para as crianças que tinham possibilidade de possuir brinquedos, não sua grande maioria puxavam pela sua imaginação, criando os seus próprios brinquedos e demais brincadeiras, uns verdadeiros empreendedores. Quem não se lembra da construção daqueles famosos carrinhos de rolamentos, em que era necessário namorar os donos das oficinas de mecânica, para arranjar os preciosos rolamentos gripados a custo zero. Com ferramentas rudimentares surripiadas às escondidas do pai, as ruas tornavam-se linhas montagem percussoras do cluster da construção automóvel em Portugal. Os mais arrojados e afoitos testavam os bólides na ladeira ingreme mais próxima, podiam tentar bater recordes de velocidade a até verificar no meio do caminho que tinham que economizar a sola das sandálias usada como travões, depois de acabarem num silvado apreendiam a controlar a velocidade desmesurada à Juan Manuel Fangio. Andávamos de bicicleta em plena rua, para lá e para cá, sem capacete, joelheiras, caneleiras e cotoveleiras, por vezes ganhávamos uns cromados novos nos cotovelos e nos joelhos. A pé ou de bicicleta, íamos à casa dos nossos amigos, mesmo que morassem a quilómetros da nossa casa, entrávamos sem bater e íamos brincar. É verdade! Lá fora, nesse mundo cinzento e sem segurança! Como era possível? Jogávamos futebol de rua, muitas vezes com as balizas sinalizadas por duas pedras… às vezes quando éramos muitos tínhamos que ficar de fora, sem jogar, nem ser substituídos… mas não era o “fim do mundo”.
Quando a sede apertava, saciava-se a sede no chafariz mais próximo, na casa da avó sem água canalizada, bebíamos água armazenada em potes de barro, em casas com água canalizada da torneira, da mangueira do quintal e não águas minerais em garrafas esterilizadas, sempre ouvi dizer que água corrente não mata gente.
Brincávamos na rua com uma única condição: voltar para casa ao anoitecer; não havia telemóveis, os nossos pais não sabiam onde estávamos! Era incrível! Era caso para atualmente, os nossos progenitores serem chamados à Comissão de Proteção, estes adultos colocavam em risco a vida dos seus filhos, considerados negligentes de sobremaneira na sua função parental. Com direito a contraditório, essa liberdade correspondia na mesma proporção a uma responsabilidade individual, em caso de comportamentos irresponsáveis a comunidade bem conhecedora das nossas genealogias tomava nota dos disparates, a informação circulava rapidamente e a punição certa ao anoitecer pela hora de jantar.
A escola com aulas só de manhã, com a sacola às costas íamos almoçar a casa, em seguida faziam-se os trabalhos de casa sem ajuda dos pais e a tarde estava por nossa conta. Na escola havia bons e maus alunos. Uns passavam e outros eram reprovados. Ninguém ia por isso a um psicólogo ou psicoterapeuta. A moda dos sobredotados não existia, nem se falava de dislexia, problemas de concentração, atenção ou hiperatividade e ninguém era medicado. Quem não sabia, simplesmente repetia o ano e tentava de novo no ano seguinte!
Ao lanche outra vez à mesa de casa, comíamos doces à vontade, pão com tulicreme, bebidas com o “perigoso” açúcar. A expressão obesidade infantil desconhecida, brincávamos na rua e erámos super ativos, para não falar no rol de tarefas que muitos tinham destinadas no auxílio aos progenitores e avós. Em suma, nada Playstation, Nintendo X-Box, jogos de vídeo, televisão por satélite, TV por cabo, nem DVD´S, Dolby Soround, telemóvel era ficção cientifica, computador e internet um sonho. Só tínhamos amigos e alguns inimigos momentâneos, brincadeiras com alguns danos colaterais como braços e dentes partidos, joelhos esfolados e cabeças rachadas, mas sem grandes consequências, pequenas cicatrizes.
A interação com o mundo animal era inevitável. Quem não teve um cão ou um gato? Nada de ração. O fiel amigo comia a mesma comida que nós ( muitas vezes as sobras) e sem problema nenhum! O banho quente? Champô? Qual quê? No quintal um segurava o cão e o outro com a mangueira ia jogando água – fria – e esfregava-o com – acreditem se quiserem – sabão – em barra – de lavar a roupa! Algum cão morreu ou adoeceu por causa disso ?
As nossas festas de garagem eram animadas por gira-discos, a fazerem aqueles cliques da agulha a deslizar nos discos de vinil. As bebidas, eram claro, a deliciosa groselha com cubinhos de gelo.
Nesses anos da segunda metade do século XX, as crianças tinham Liberdade, Fracassos, Sucessos e Deveres… E aproveitávamos para aprender a lidar com cada um deles. A questão crucial que se impõe é – Como conseguimos sobreviver? E acima de tudo, como conseguimos desenvolver a nossa personalidade ? Sem dúvida vão responder que a vida relatada era uma chatice, aborrecida, uma verdadeira seca…
Mas … Como éramos felizes!!!
Carlos Cruchinho
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