A Real Fábrica do Gelo
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A Real Fábrica do Gelo

revista amar - Edifício da Real Fábrica do Gelo

 

– Queres um gelado de fruta também?

Perguntou D. Ana Catarina de Lorena, a aia e mestra (tutora) e 1ª duquesa de Abrantes à menina Maria Francisca – futura rainha D. Maria I -, com 9 anos, naquela tarde quente de verão, o tórrido e típico calor de julho. Era 1743, e o palácio de Mafra fora inaugurado razoavelmente há pouco tempo. Após árduos anos de trabalho que reuniu um sem número de profissionais, aquela obra se completara seis anos antes.

As janelas estavam todas abertas, mas o pouco vento em nada ajudava, só os gelados e as bebidas bem frescas traziam o alívio tão desejado àquele salão no qual estavam as outras duas crianças, Maria Ana Francisca, com sete anos, e a caçula Maria Doroteia, aos quatro e deliciosos anos, com os dedinhos já coloridos pelo efeito do avermelhado a tingir-lhe as mãos. Por mais que D. Ana a limpasse, nada a demovia daquela missão mais do que importante, o gelado que a entretinha feito um brinquedo brilhante. Seu pequenino mundo tinha uma única cor: vermelha, e um único sabor: magia!

Era um dia tranquilo e poucas outras personagens assentavam-se à mesa. Havia um silêncio pelos corredores que davam acesso às demais salas, à exceção, vez por outra, dos passos do mordomo a controlar a refeição do rei D. João V (pai de D. José I e avô das meninas), ainda acamado naqueles dias, vítima de doença que o impossibilitava de ir e vir como sempre o fizera em tantos anos anteriores.

Sim! Sim! Claro que sim! Quero o meu gelado! Respondia Maria. Até as minhas irmãs já o tomam! Os olhos arregalados daquelas três crianças denunciavam que, ou houve batota na refeição, e muitos refrescos e gelados tomaram em vez de outros itens do cardápio estabelecido, ou o menu fora respeitado, porém não faltou espaço para os deleites que se seguiram. As três Marias sonhavam acordadas, esquecendo-se temporariamente do bafo quente que se instalara, sem qualquer cerimónia, naqueles meses.

Não muito longe dali, no piso inferior, bem junto ao portão dos fundos que dava acesso à cozinha, chegava uma carga de gelo. Dois auxiliares imediatamente acorreram à carroça para ajudar a descarregar os pesados blocos. Logo eram depositados, embalados, em armários de grossas portinholas, dentro de um quartinho friamente escuro e bem ventilado cuja serventia era a de conservar ao máximo aquele tesouro, um verdadeiro ouro transparente, água, simplesmente água, mas congelada.

Longa fora a viagem pelas dificuldades de acesso em parte do caminho desde a Serra de Montejunto até ao palácio. Sessenta e três quilómetros se intrometiam entre o primeiro carregamento extraído dos dois silos da Real Fábrica do Gelo e um de seus destinos: Mafra, ou melhor, pequenas bocas ávidas por refrigerados regalos – também o recebiam membros da corte, pessoas de posse e alguns estabelecimentos.

Gravaram-se no tempo as histórias desta jornada que revolucionou a gastronomia à época. Numa tradição oral, os ecos do passado alcançam os dias atuais, descrevendo a construção da fábrica com uma zona de extração de água, com dois poços e um tanque considerável, a zona de fabrico de gelo, com quarenta e quatro tanques ou piscinas rasas (em finais de setembro enchiam-lhes de água, e com o frio intenso das madrugadas, formava-se o gelo), e a zona do armazenamento e expedição, um charmoso edifício com dois silos, misturado, artisticamente, com o bosque local. Era uma verdadeira cena extraída das telas modernas dos cinemas.

Antes do nascer do sol, o guarda da fábrica descia à Vila de Pragança, nas proximidades, e chamava os trabalhadores, que cortavam as imensas placas de gelo, carregavam-nas até aos silos, mantendo-as conservadas até o verão. Durante inúmeras noites o processo se repetia. Era necessário ser ágil e tirar proveito do clima favorável naquelas horas escuras. Era um trabalho temporário bem-vindo na região. Pronto! Ali se formava o estoque, adormecido como um sonho ameno à espera de um escaldante amanhecer, meses depois.
À época do calor, então, iniciava-se o processo de distribuição conforme a compra. Era um negócio, um comércio, naturalmente. Os pedaços eram embalados com palha e serapilheira (tecido grosso para fazer sacos), e colocados no lombo de animais, uma maneira de iniciar a viagem, pois havia uma descida íngreme na serra, até ao ponto onde carros de boi aguardavam à continuidade da logística. Uma refinada estratégia de locomoção rápida atestava a eficiência do sistema. Quase se lê escrito nas sacarias: “Servimos bem para servir sempre no calor.” Um pouco mais, e logo se fazia nova troca, colocando o gelo em barcos que navegavam pelo rio Tejo (o curso de água das mil e uma histórias…), alcançando, por fim, os pontos de desembarque e as carroças de entrega ao consumidor. Qualidade é tudo!

– Vamos! Vamos, pedia D. Ana Catarina de Lorena à Maria.

– Só mais um pouco, mais um pouco de gelado… respondia-lhe com o olhar suplicante e ao mesmo tempo comilão.

Ah! gostosos verões tão bem esperados, tão mais divertidos! São páginas folheadas pelos dedos do tempo. Oh! o tempo…

A Real Fábrica do Gelo funcionou até 1885, em cujo poder estava o rei D. Luís I. Dali por diante, as novidades passaram a chegar cada vez mais rapidamente, superando o que um dia foi uma verdadeira revolução, um salto trazido desde a Espanha, e implantado em Portugal, uma sensação tanto de frescor quanto de impressão.
Quem diria que os soalheiros dias de verão do século dezoito já presenciavam as muitas bebidas frescas e os indizíveis gelados graças à fábrica que funcionou em harmoniosa parceria com a natureza, em seus dias de frio rigoroso?

– Queres um gelado de fruta também?

 

revista amar - real fabirca do gelo

 

Armando Correa de Siqueira Neto

Psicólogo e Mestre em Liderança

 

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