Sobrevivência, turismo e arte
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Sobrevivência, turismo e arte

douro - revista amar

 

Quão modesta pode ser a nossa ideia a respeito dos antepassados da Pré-história? O que de facto conhecemos acerca das suas vidas? Como era o universo que os cercava e que muito depois passou a se denominar de países, a exemplo de Portugal até outros sítios explorados por cada grupo ancestral? Já imaginou um hotel primitivo no qual se hospedavam grupos itinerantes? Exposições de pintura ou gravura remotíssimas? Quem sabe não seja o momento de se debruçar sobre nós mesmos através de um rico álbum de memórias?

Para além das interpretações dos especialistas ao redor do planeta, o passado nos deixou belíssimas surpresas, algumas de tirar o fôlego: são evidências com as quais é possível olhar para trás e reconhecer um bocado do que se passou, e não apenas entender os comportamentos visíveis ao mundo exterior, mas também o cosmos interior dos pensamentos e sentimentos tão graciosamente registrados nas rochas e nas camadas assentadas do tempo, uma a uma, quer seja, no chão arqueológico da estratigrafia ou simplesmente os estratos sobrepostos de cada piso com uma história particular. São restos de lixo deixados, claramente. E graças a este lixo sabe-se bem mais a seu respeito na atualidade. Muito é dito em total silêncio quando se percebe a linguagem da natureza. Vamos lê-la?

 

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Armando nas Grutas do Poço Velho, Cascais Créditos: Armando Neto

 

É claro que não é tarefa simples encontrar um local no qual se possa escavar a fim de estudar tais estratos, tampouco avaliá-los depois de descobertos com o dedicado esforço e a exigente paciência, mas o prémio resultante é indizível. Grutas e cavernas estão na lista dos achados que tanto cabem a arqueólogos quanto a quem por lá passe e se depare com uma fenda, por exemplo, numa espécie de sorte, ou até mesmo um simpático cãozinho que fareje despercebida abertura até então.

Pois bem, é hora de adentrarmos a um trecho das Grutas do Poço Velho de Cascais, ao largo do qual passam muitas pessoas sem se darem conta de tamanha riqueza subterrânea que permaneceu fechada por muitos anos, e que, após ter-se criado a necessária estrutura de segurança, tornou-se acessível ao público durante alguns meses de 2022. O que nos conta este pequeno mundo antigo à parte do que lhe sobrevém à superfície moderna lusitana das ruas e prédios? Ali estiveram pessoas (algumas foram enterradas nos 4º e 3º milénios a. C.) desde o que se chama de período Paleolítico (pensemos em 25 mil anos!). O charmoso Museu da Vila de Cascais expõe artefactos de pedra polida e lascada, placas de xisto decoradas, cerâmica, colar e um coelhinho de osso polido, seu acervo tecnológico, artístico e quiçá espiritual. Prossigamos…

 

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Vale do Côa Créditos: Armando Neto

 

O próximo passo (por longo que seja) nos coloca na região do Alto Douro, no Parque Arqueológico do Vale do Côa, com cerca de mil e duzentas rochas gravadas. Uma verdadeira exposição de arte a céu aberto, cuja datação mais antiga lhe confere a idade de 20 mil anos aproximadamente. Vale lembrar que ver de perto é incomparavelmente arrebatador: o que os olhos veem o coração exalta! Mais…

Em nossa pequena rota pré-histórica, deixaremos para trás Portugal e suas tantas outras riquezas como antas, mamoas, menires, monumentos funerários, etc, para alcançarmos a Espanha. Dentro da Península Ibérica, podemos nos surpreender com o número de cavernas que na outrora foram ocupadas, e aqui podemos nos aprofundar à sugestão da hotelaria, claro, pois muitos grupos, durante muito tempo, se deslocaram por vastas áreas e nelas existiam importantes abrigos.

 

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Andréa em Altamira, Cantábria
Créditos: Armando Neto

 

E nas bocas das imensas covas que já conheciam e lhes serviam de ponto de apoio, preparavam os seus alimentos, uma dieta normalmente mesclada com carne de caça e pesca, raízes, frutos e ervas (variáveis com as regiões e disponibilidades sazonais), dignas, provavelmente, de paleochefs conceituados por meio da longa experiência dedicada em seu circuito vital e ao seu meio social. Por que o “restaurante” não funcionava dentro das cavernas? Em razão da fumaça, naturalmente, e o próprio fogo ali era alimentado durante as noites de permanência até o oportuno checkout. Pouca bagagem, muita esperança! Há evidências arqueológicas de que grupos diferentes dividiram o mesmo espaço geológico ao mesmo tempo. Quem nos garante que não trocaram sabores em suas cordiais conversas de passagem? Qual tempero estaria mais apetitoso? Em uma espécie de MasterChef Ancestral (é só uma pitada de brincadeira…).

 

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Covalanas, Cantábria
Créditos: Armando Neto

 

Às profundezas das cavernas-hotéis, reservavam-se os espaços artísticos através de esplêndidas exibições, mormente de animais, figuras geométricas e, ocasionalmente, figuras e mãos humanas. Cervos e cervas (18 delas para 1 masculino, por exemplo – sua mais interessante interpretação simbólica aponta à passagem entre o mundo material e o espiritual -, além de cavalo e auroque), como os encontrados na Caverna de Covalanas (19 mil anos, Cantábria), assombram por sua beleza e técnica, a pintura pontilhada nomeadamente. Contornos aproveitados das rochas lhes dão a robustez e o desenho de músculos (inebriantes traçados de anatomia), logo, pernas afastadas e um leve tremor de luz ao vento (lâmpadas feitas de pequenos suportes de pedra com tutano de ossos a queimar, sem roubar o oxigênio, qual um jogo de luz e sombra), trazem o movimento do mundo mágico de um cinema simples e inesperado. É um encantamento hipnótico! É a deslumbrante arte viva! É um luxo pré-histórico por muitos desconhecido.

 

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Covalanas, Cantábria
Créditos: Armando Neto

 

E assim se mostram outros “imóveis” da antiguidade, como ‘El Castillo’, em Puente Viesgo, ‘El Pendo’, em Escobedo, ‘Hornos de la Peña’ (com seu ilustre morador, um pequeno morcego que nos contornou e ficou imóvel agarrado a uma pedra), em San Felices de Buelna, e sua mais famosa, ‘Altamira’, em Santillana del Mar (todas na Cantábria). E o que dizer de Altamira então?! Sua história de 16 mil anos (há mais para tratar…)? A ‘Capela Sistina’ da arte rupestre descoberta por um cão que ficou preso entre algumas fendas ao perseguir sua caça, até o seu dono o libertar e comunicar o achado, explorado pelo jurista e arqueólogo amador espanhol Marcelino Sanz de Sautuola (1831-1888), mas foi sua filha de oito anos, Maria Sanz de Sautuola (1871-1946), quem adentrou ao espaço com sua despretensiosa lanterna e se deparou com os bisões (cavalos, veados e figuras) pintados no teto. O mundo já não era o mesmo. Uma verdadeira revolução se deu após árduos e persistentes trabalhos de ciências que se uniram ao redor das descobertas que passaram a chegar até aos dias atuais.

 

Cavalo em Hornos de la Peña revista amar
Cavalo em Hornos de la Peña
Créditos: Armando Neto

 

De forma bastante simples, claro, é possível olharmos o tempo remoto e nele nos depararmos com riquíssima arte, em exposições ora mais fáceis de serem vistas, ora bem mais difíceis pela escuridão e localização labiríntica típica de certas grutas e cavernas. Fruto de longo planejamento, pois que o paleoartista não podia errar (não há vestígios de ajustes nas obras), além de empregar técnicas de pintura ou gravura com precisão, dotava-as com o movimento e o contorno anatomicamente perfeito.

 

Paisagem em El Pendo, Cantábria - revista amar
Paisagem em El Pendo, Cantábria
Créditos: Armando Neto

 

Em seu tour de sobrevivência, os grupos ancestrais já tinham bons mapas mentais sobre suas rotas e locais de hospedagem, fazendo de entradas de cavernas suntuosas naturalmente o seu “apartamento” e “restaurante”? Ah! Muitos destes sítios se situavam não apenas próximos de ribeirões com água doce potável, árvores frutíferas, abundância de caça e pesca, raízes, etc, eles tinham uma vista irresistível do alto de montanhas, de esverdeados vales ou de frente para o mar. Não quero exagerar, mas para além da qualidade hoteleira, é possível sugerir (com bom humor novamente) que a exigência de cinco estrelas estendia-se às localidades também.

Nossos antepassados, sua sobrevivência, seu turismo e sua arte nos revelam vestígios significativos, que podem nos estimular a repensar quem somos hoje e o que podemos, até certo ponto, esperar do amanhã. Já pensou?

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