Simone de Oliveira
Entrevistas

Simone de Oliveira

revista amar - simone de oliveira
Créditos © Simone de Oliveira

 

“Quero sair pela porta larga, com a voz que tenho”

 

 

Nasceu há 83 anos, uma mulher livre e fora do seu tempo. Chama-se Simone e canta cantigas. Para além de ser uma atriz de reconhecido valor, foi jornalista, radialista e apresentadora de espetáculos para se agarrar à vida, quando esta lhe pregou uma das muitas partidas que aprendeu a superar, buscando forças nem a própria sabe muito bem onde. Numa conversa intimista com Madalena Balça a inesquecível Simone de Oliveira, mostra-se tal como é. Uma mulher de coragem, resiliente, divertida e cheia de memórias que se cruzam com a história da cultura portuguesa dos últimos 63 anos. Simone anuncia a sua retirada dos palcos para breve. Pode até ser, Simone, mas dos nossos corações não sairá nunca.

Revista Amar: A Revista Amar dedica a edição de maio às mães… e se não se importa, gostava precisamente de começar por aí. Que memórias mais profundas tem da sua infância e em concreto da sua relação com a sua mãe?
Simone de Oliveira: A relação com a minha mãe foi extraordinária como também foi com o meu pai. A minha infância foi passada numa quinta nos Olivais, porque o meu pai era gerente duma fábrica de moagem e as minhas grandes recordações são ver o Tejo que batia ali, hoje é uma autoestrada, e portanto continuo a perguntar-me para onde foi o Tejo… lembro-me das barcaças a subirem o Tejo para descarregarem o trigo naquele cais para ir para a fábrica, lembro-me que havia um poço muito grande, que para mim e para a minha irmã era uma piscina que não o era, lembro-me de uma palmeira enorme, lembro-me que tinha figueiras, nogueiras e cerejeiras e o meu pai, que era considerado um bolchevista. Porque o meu pai, tudo o que havia nas árvores era primeiro dividido pelos empregados e o que sobrava é que era para nós (risos). A minha mãe foi funcionária dos correios, odiou toda a vida ser empregada e o dia mais feliz da vida dela foi o dia em que ela ficou reformada. O grande desespero dela era fazer-me as tranças, porque ela tinha que ir para Lisboa de comboio e claro que fazer-me as tranças era um desassossego e uma coisa horrível. E eu chorava baba e ranho. A relação com a minha mãe foi sempre extraordinária… eu tive a sorte de ter uns pais que foram capazes de suportar esta mulher completamente diferente do tempo em que nós vivíamos e ter as atitudes todas que eu tive e que depois foram o grande esteio da minha vida até, infelizmente, desaparecerem muito novos. A minha mãe morreu quando eu tinha 33 anos e foi pela morte da minha mãe que voltei a cantar. Eu estive entre os 30 e os 33 sem cantar porque tinha perdido a voz, por voz mal colocada e excesso de trabalho.

RA: Antes de falarmos desse período, que foi dos mais negros, lembro-me de ter lido em algum lado que o dia da morte da sua mãe foi a maior tragédia da sua vida…
SdO: E foi… foi porque eu estava a trabalhar no Parque Mayer, a fazer uma comédia com a Io Appolloni com a casa esgotada e estava na igreja e o meu pai batia-me no ombro e dizia-me “Simone, olha as horas… Simone, olha as horas”… fui fazer a peça e ninguém soube, ninguém deu por isso. Tive uma grande exaltação com uma amiga minha que estava no camarim e que me tinha tirado a fotografia da minha mãe. Quando entrei no camarim e não vi a fotografia da minha mãe pu-la fora do camarim e ninguém soube… só no fim. Lembro-me do Vasco Morgado que sempre me tratou por “vedeta” dizer-me “ó vedeta, porque é que não disse?” e eu respondi “não, a casa estava esgotada e eu não fazia uma coisa dessas”… foi o dia mais horrível da minha vida. Por muito tempo tive a fotografia da minha mãe e do meu pai, mas depois acabei com isso.
Ela estava deitada na cama e passou o dia todo a dizer “quero olhar para a Simone, eu quero olhar para os olhos da Simone” e eu estava em casa e ninguém me chamou. Ela morreu com o médico lá, que disse que ela tinha morrido de um ataque de pânico porque ela tinha um aperto mitral e não quis ser operada ao coração e começou a enervar-se, a enervar-se, a enervar-se e o sangue chegou ao coração e não passou. Quando eu entrei em casa ela estava a dormir e eu só dizia “ó mãe fala comigo, ó mãe fala comigo”… foi o dia pior da minha vida… o pior dia da minha vida.

RA: É melhor ficarmos com as memórias mais felizes, não é? Memórias em que a sua mãe lhe deu a mão, no sentido literal até do termo e não só, quando a Simone passou por fases difíceis e a primeira foi a do seu primeiro casamento, aqueles 3 meses terríveis…
SdO: Sim, foram… de violência doméstica profunda! E eu fugi (risos)… ninguém fugia em 1957, como eu fugi de casa, porque os pais mandariam a menina para casa. Eu tinha casado pela igreja e talvez o senhor com quem casei na altura tivesse pensado “ela vai para Alvalade e mandam-na para cá”, só que eu meti-me no comboio na Amadora e tinha 25 tostões fechados na mão direita e não tinha mais nada… nem mala. Tinha uma saia verde, às pregas, com peitilho e uma blusa branca e aqueles 25 tostões fechados na mão… como é que eu apareci em Alvalade, não me lembro até hoje! Só sei que disse ao meu pai que “se quer que eu vá para a rua, eu vou, mas para lá não volto!”. E o sr. Macedo olhou para a minha cara e pensou “não vale a pena, que ela não vai” e aceitaram-me em casa. Depois estive muito doente e muito mal da cabeça.

RA: Essa parte da doença também é uma parte fulcral, porque lembro-me também de, numa outra ocasião que conversámos, a Simone ter dito que, de certa maneira, as cantigas salvaram-na da própria depressão.
SdO: Completamente…

RA: Quer contar essa história, que muita gente não conhece?
SdO: Eu conto com certeza. Eu costumava ouvir a então Emissora Nacional e à sexta-feira dava um programa entre o meio-dia e vinte e a uma da tarde. Eu gostava de ouvir as cantigas e a minha mãe dizia “olha, vai começar aquele programa que tu gostas de ouvir”, porque a minha mãe pedia-me muitas vezes para cantar e eu cantava sempre a mesma coisa (risos) levei anos a cantar o Fado da Carta da Fernanda Baptista (risos) e o Marco do Correio do Alberto Ribeiro. Quando vou para casa naquela crise e o médico dizia que eu não estava bem da cabeça e perguntava-se “o que se pode fazer por esta miúda? Como é que a gente a tira da cama?”, a minha irmã diz à nossa mãe “ó mãe, ela tem uma voz tão bonita e gosta daquele programazinho” e claro que foi dizer ao nosso pai e ele “jamais na vida” e só porque o médico disse que se tinha que se “fazer qualquer coisa senão a cabeça dela dá a volta”, que a minha mãe tem uma longa conversa com o meu pai e disse-lhe “faz dias sem ela sair de casa e fazia-lhe bem sair 3 horas por dia, das 5 às 8 e vai com a mana” mas o meu pai não queria, até que se convenceu. A minha mãe foi ao Centro de Preparação de Artistas da Rádio que era na Casa das Beiras, falou e contou ao Mota Pereira o que se estava a passar comigo e que só ia 3 horas por dia. Eu nunca fui para lá para cantar ou para ser o que fosse. E fui com a minha irmã e quando cheguei lá perguntaram-me se eu sabia o que era um piano e eu disse que sim, microfone não sabia o que era porque nunca tinha visto um. Cantei um bolero e lembro-me perfeitamente qual foi e ficaram todos a olhar para mim… a Alice Amaro entre outros ficaram admirados com a minha voz… a minha outra voz, claro! A que eu tinha. Perguntaram-me se eu queria cantar e eu disse que não. Eu não queria nada, eu só queria que o que me aconteceu não me tivesse acontecido. Acabei por ficar lá e 3 meses depois eu estava naquele programa da Emissora Nacional que costumava ouvir às sextas-feiras ao meio-dia e vinte. E aparece a televisão nesse ano.

RA: Exatamente, ainda por cima coincide com o período grandioso da comunicação em Portugal. Entretanto, estava aqui a ouvi-la, e estava a pensar “que grande ato de amor do seu pai”, não é?
SdO: Sim, sim… mas eu tive vários atos de amor do meu pai. Quando fiquei grávida depois, sem casar (risos) ele só se apercebeu que estava grávida quando a neta nasceu (risos) eu já tinha 2 ou 3 meses de gravidez e ela acabou por nascer com 7 meses. A minha filha chama-se Maria Eduarda, porque ele estava a ler Os Maias de Eça de Queirós e eu estava no fim da gravidez e ele pensou sempre que ia ter um neto porque tinha duas filhas e já estava muito cansado das raparigas. Ele então disse “eu ainda vou ter um neto com certeza, mas se fosse uma neta gostava que o nome fosse Maria Eduarda” e ela nasceu no outro dia e ficou Maria Eduarda. Ele teve uma grande paixão pela minha filha, aliás o meu neto chama-se Guy, exatamente porque era o nome do meu pai.

RA: A Simone até nesse ponto foi realmente uma mulher completamente fora da época, porque quando quis ter os filhos, teve.
SdO: Exatamente… tive de quem quis, quando quis e como quis. Eu digo-lhe uma coisa… eu gosto de ser livre. Eu costumo dizer que o 25 de Abril foi extraordinário, mas eu nasci livre e aquilo que eu achava que estava errado eu dizia que estava errado e havia as coisas que eu não entendia e eu perguntava-me, “mas porquê? E porque é que isto é assim?”… e, portanto, fui agindo conforme eu achava que devia viver, contra uma sociedade perfeitamente fechada, Católica Apostólica e Romana. Para batizar os meus filhos foi uma desgraça, andei de igreja em igreja… corri 5 igrejas. Não podia batizar, porque eu era “amancebada”, que é das palavras que até hoje mais odeio. Por isso é que a minha relação com a Igreja é muito complicada, embora tenha sido profundamente amiga do Padre Cristóvão, que era o diretor da Casa Pia de Évora que conheci quando fui lá fazer um espetáculo. Eu quando estava muito aflita metia-me no carro e ia para Évora. Ele tirava o crucifixo de madeira e ponha-o na secretária e dizia-me assim: “então Simone, vamos tomar um Porto?” e eu falava, falava, falava e depois dizia “então, até logo”, metia-me no carro e vinha para Lisboa. Esse padre acabou por casar a minha irmã e ficar muito amigo da minha mãe.

RA: Mas essa sua atitude na época, de ter os seus filhos, para além de tudo mais teve um peso até na vida dos próprios miúdos, porque a Simone não lhe podia dar-lhes nome, não é?
SdO: Eles eram filhos de pai e mãe incógnita… eu não podia dar-lhes o meu nome porque se desse iam ter o nome daquele senhor de quem tinha fugido…

RA: … porque, para todos os efeitos ainda estava casada?
SdO: Pois claro. Eu só consigo a separação judicial de pessoas e bens que tinha no Bilhete de Identidade e no Passaporte porque levei uma grande tareia em público e nessa última grande tareia as minhas testemunhas, que não podiam ser de família, foi o meu querido Artur Garcia que já partiu e mais umas colegas que estavam lá, uma delas até foi a madrinha da minha filha, que foram testemunhar que eu realmente tinha levado a tareia e só assim é que consegui a separação judicial de pessoas e bens, porque senão eu nem podia sair do país e nem trabalhar, porque precisava da autorização do marido.

RA: Apesar de percebermos a evolução, pelo menos em termos legais, a verdade é que quando a Simone veio falar desta situação da sua vida particular, veio também muito em socorro daquilo que percebia que muitas mulheres ainda passam hoje. E isso para si, deve ser uma coisa particularmente deprimente e até angustiante, não?
SdO: Naquela altura, não tive muito essa noção. Só tive a noção muito mais tarde. Talvez eu tenha com a minha atitude aberto algumas portas, para que as pessoas não tivessem medo de dizer as coisas, mas naquela altura eu era muito miúda, minha querida, eu tinha 19 anos! Portanto, eu só achava que não queria aquilo e que aquilo não podia ser de qualquer maneira nenhuma!

RA: Mas em 2015, quando a Simone deu entrevistas e falou mais abertamente sobre essa fase e lembro-me que, na altura, em Portugal, acabou por ter impacto porque era muito falado o tema da violência doméstica e ainda é, como sendo uma chaga no país e é por isso que acho que a sua intervenção acabou, se calhar, por ajudar outras mulheres a acordarem para a vida, não é?
SdO: Eu quero acreditar que sim! Aliás, penso muito honestamente, até porque sei das conversas que têm comigo os vários jornais, que as minhas atitudes, embora fossem criticadas ao tempo, depois tiveram os seus resultados. Isso a mim, pronto… ai que bom que fui capaz de abrir determinadas portas… foi ao murro (risos) e ao pontapé! Mas abri e, aliás, continuo a dizer que tive um pai e uma mãe perfeitamente notáveis, porque ao tempo foram capazes de aceitar com paixão, carinho e com tudo que tinham esta filha completamente fora do contexto de tudo.

RA: Estávamos a falar dos seus filhos e lembro-me duma história também da Maria Eduarda em que a Simone foi chamada à escola…
SdO: Eu fui chamada à escola e fui perguntar porquê à diretora do ciclo, porque ela era e foi uma brilhante aluna, aliás os dois foram uns ótimos filhos, não tenho nada a dizer de um ou do outro em aspeto nenhum. Sobretudo em clareza, espinha direita e honestidade são dois filhos excecionais. E perguntaram-me como é que uma rapariga, filha de uma artista que usava decotes, fumava e se deitava tarde era a rapariga que era e a aluna que era e eu disse-lhe “ó mulher, pergunte-lhe a ela!”. Como uma vez numa aula de Religião e Moral disseram que filhos de pais separados são todos infelizes, ela levantou a mão e disse “é mentira senhora doutora, porque sou filha de pais separados e não sou nada infeliz!” e lá fui eu chamada outra vez ao liceu (risos).

RA: Até nesses pequenos pormenores se via como a Simone estava a educar bem.
SdO: Tentei. Naturalmente, que errei muitas vezes, mas pus sempre os meus filhos em primeiro lugar, mesmo quando comecei a cantar eu perguntei-lhes, porque já eram mais crescidotes. Se eu dissesse que ia a Paris, o Pedro perguntava “a mãe volta?”, porque o pai tinha ido e não tinha voltado, e eu respondi sempre a mesma coisa “a mãe volta sempre”. Mas se eles me tivessem dito “ó mãe, nós não queremos”, eu tinha deixado de cantar.

 

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Créditos © Simone de Oliveira

 

RA: Portanto, os seus filhos acima de tudo, sempre.
SdO: Sempre em tudo. Se fizessem mal a um deles, eu matava. Matava! Eu digo isto, a saber o que estou a dizer… se alguém tocasse na minha filha ou no meu filho, naquela altura, ou como num dos meus netos, (eu tenho quatro netos, e sei que não devo dizer isto), mas eu matava. Não perdoava! Podia andar a pensar como iria fazer (risos). Por isso é que eu quis ter a licença de Porte de Arma, porque andei sempre sozinha, anos a fio de um lado para o outro, para cima e para baixo a conduzir para cantar, mas o meu pai nunca me deixou. Ele dizia “não Simone, com o teu feitio e a tua maneira de ser, um dia passas-te da cabeça” e eu respondi que era melhor não (risos).

RA: Foi o mais prudente…
SdO: Foi.

RA: Entretanto fez a sua vida e os seus filhos foram crescendo e não me lembro, em toda a minha carreira de jornalista, de ver os seus filhos expostos. Foi uma determinação sua, enquanto mãe?
SdO: Sim. Eles só tiraram fotografias comigo quando já eram adultos e quiseram tirar. Nunca, mesmo quando me pediam fotografias de capas e livros nunca deixei, nem dos meus filhos nem dos meus netos. Ninguém sabe quem são. Eu almoçava muitas vezes com o meu filho quando eu ia buscá-lo à faculdade e achavam sempre que era o meu namorado. Então ele dizia “ó mãe, a mãe quer sopa?” (risos) porque eu era muito nova e ele era muito bonito, ainda hoje que é um homem de 60 anos é muito bonito. E para saberem que eu era a mãe lá dizia ele “o mãe, ó mãe quer peixe ou carne?” (risos)… era muito engraçado.

RA: Também, de certa maneira, era o orgulho na mãe, que deve ser o que os dois devem sentir.
SdO: Penso que sim.

RA: Quando a Simone despertou toda aquela popularidade com a Desfolhada e a sua chegada a Portugal, os seus pais como reagiram a isso?
SdO: Eu lembro-me que para aí de Vila Franca até a Santa Apolónia o comboio não andava porque as pessoas estavam na linha. Eu só pensava, “mas que com diabos o que é que se está a passar?”. Quando cheguei a Santa Apolónia estavam lá 22 mil pessoas e eu “ai, ai, ai minha Nossa Senhora!”. Então a Maria Leonor, o José Fialho e o João Soares Louro, que depois foi o meu padrinho de casamento fizeram uma roda para eu poder conseguir sair do comboio. As pessoas da televisão não queriam andar de avião e viemos de comboio e levámos 10 horas da fronteira até aqui. O meu pai estava no meio deles e quando sai o meu pai agarrou-se a mim… e eu só voltei a ver isso há bem pouco tempo que a televisão fez o favor de ceder as imagens, e foi há pouco tempo que vi a chegada toda, porque nunca tinha visto. A televisão cedeu aqueles 6 ou 7 minutos onde estava o meu pai e que me deu aquele abraço, não disse nada, mas foi aquele abraço e aquele beijo… a minha mãe só chorava (risos).

RA: Era um choro de alegria e esses é dos bons…
SdO: Sim.

RA: Mas houve momentos em que o choro não foi tão bom, como quando foi o “mau uso” que fez da voz nessa fase, precisamente, e a consequência de a perder.
SdO: Sim, mas olhe, foi das coisas magníficas que me aconteceram foi perder aquela voz toda que eu tinha e vir esta. E acontece-me uma coisa, que foi o Zip Zip, e eu não cantava nessa altura e vi que já não se cantavam aqueles textos e da mesma maneira. Então tentei e tive, realmente nisso, dois homens fundamentais nos primeiros anos que foi o Nóbrega e Sousa e Gerónimo Bragança e depois aparece José Carlos Ary dos Santos, o David Mourão Ferreira, o José Luís Tinoco etc. Eu nunca pedia uma canção a ninguém, minha querida… nunca pedi um poema a ninguém.

RA: A poesia da Desfolhada estava difícil de ser cantada, porque nem toda a gente queria dizer “quem faz um filho, fá-lo por gosto”.
SdO: (risos) Não, ninguém queria cantar e então o José Carlos Ary dos Santos perguntou “onde é que está aquela mulher muito grande?”, porque eu pesava 85 kilos e “aquela mulher com voz muito grande, onde é que ela está?”. Levaram-me a um restaurante, do qual tenho má memória porque perdi imenso dinheiro ali, O Candelabro. O Ary olhou para mim e perguntou-me “ouve lá, és capaz de cantar isto?” e eu disse “eu sou!”, porque já me tinha chegado a letra, aquele texto, num papel de embrulho na boite Galeria 48 (…), portanto, eu já tinha lido aquele texto, só que não sabia porque antes as pessoas concorriam ao Festival, mas não sabiam quem eram os autores. Quando ele me dá o texto, eu disse que já o tinha lido antes. E eu não tinha problema nenhum em dizer “quem faz um filho, fá-lo por gosto”. Claro que daí para a frente fui insultada do quanto há, mas hoje “quem faz um filho, fá-lo por gosto” e a Desfolhada quase que virou um hino nacional, naquela altura foi uma coisa que parecia que tinha caído a proa. Uma vez perto de Leiria cantei-a e há um senhor, com uns 50 anos, que se alevanta e me diz “parece impossível, minha senhora, ter o desplante de dizer uma coisas destas” e eu respondi “olhe, é assim… se o senhor não faz um filho por gosto porque não pode, não sabe ou se esqueceu”. (risos)

RA: (risos) Esta é a Simone que gosto! (risos) Já agora, em relação ainda a essa fase… teve que fazer muita coisa pela vida e uma delas foi – ser radialista.
SdO: Foi e fiz o Um Oito Zero com Ângelo Granja

RA: E fez locução no Casino da Figueira da Foz, a apresentar os seus colegas…
SdO: Sim.

RA: Isso foi doloroso?
SdO: Foi… Foi doloroso, mas eu tinha dois filhos para criar. Quando eu perdi a voz a Maria Eduarda tinha 10 anos e o Pedro 8 anos e eu tinha que fazer qualquer coisa. Quando veio aquele convite eu disse que fazia, mas com os meus vestidos de cantar, claro! Apresentei todas as pessoas, inclusive a Amália e o Carlos do Carmo. E é o Carlos do Carmo que me chama e pediu para tocarem um fado e disse-me para cantar com ele e eu “ai não me faças isso!” e cantei e foi aí que eu pensei que “eu posso voltar a cantar, de outra maneira e com outra voz” e felizmente que isso aconteceu, porque senão, não tinha chegado até hoje. Foi das coisas mais extraordinárias que me aconteceu foi perder aquela voz.

RA: Esta fase foi passada, mas, entretanto, ainda havia mais surpresa que a vida lhe reservava. E a “surpresa” chamada cancro é sempre uma coisa aterradora, só pelo nome, não é? Como foi enfrentar esta fase, do primeiro cancro?
SdO: É e do primeiro eu estava numa casa de fados do Jorge Barradas e perguntei se alguém conhecia uma ginecologista, porque eu sentia uma coisa que me picava (no peito) como se fosse uma espetadela de alfinete (…). E havia aqui qualquer coisa que não batia certo, porque não tinha nada no peito e no Porto fui ao médico e veio o resultado (…) que guardei durante 15 dias sem dizer nada a ninguém (…) só fumei e chorei! (…) Fui para o Dr. Jorge Guidão que viu a radiografia e perguntou-me “quando quer ser operada? Segunda-feira?” e eu concordei. Para fazer exames no IPO entrava escondida, porque ninguém podia saber. Depois tinha que ir para a CUF, mas também tinha um ensaio no Teatro Maria de Matos, em Lisboa, para uma revista e a Marina Mota deu conta que alguma coisa se estava a passar comigo, porque eu não tinha aparecido para o ensaio geral e foi de hospital em hospital até me encontrar na CUF, no quarto 25.

RA: Eu já registei o facto de a Simone a dizer algumas vezes “ninguém podia saber”. Era uma necessidade? Preservar a sua intimidade?
SdO: Não era isso.

RA: Era por ser uma figura pública com exposição muito grande?
SdO: Era isso e as pessoas só souberam ao fim de 6 anos, quando eu estava com o Varela e o meu filho num programa do Herman (José) quando ele me perguntou e eu olhei para o Varela e para o Pedro e pensei “é agora que tenho que dizer”. Durante 6 anos ninguém soube. Ninguém deu por isso e eu não fiz reconstrução, tenho uma prótese mamária do lado direito e do lado esquerdo não tenho prótese porque só tiraram metade e ficou bem. Eu não queria que tivessem pena. Porque é que eu vou acabar de cantar este ano? Porque eu quero sair pela porta larga e quero sair com a voz que tenho, lúcida, a conseguir saber o que digo.

RA: Eu acho que a conheci quando apresentei uns espetáculos na Feira Popular com a Mara Abrantes, que era a produtora, não sei se se lembra. Até o Carlos Paião cantou nesse espetáculo.
SdO: Sim, lembro-me muito bem.

RA: E lembro-me das coisas mais marcantes, dessa altura, foi pensar “que mulher esta! Que mulher de força!” Lembro-me perfeitamente, porque sabia parte da história. Mudando de assunto, a perda dos seus pais foi violenta, naturalmente… mas a perda do Varela Silva, que foi o grande amor da sua vida, foi dura…
SdO: Foi horrível! Nesta casa, onde vivo há 47 anos, e ele faleceu vai fazer 25 anos no dia 15 de dezembro, durmo na mesma cama… só mudei o colchão, claro e a casa depois foi toda modificada e mudei de móveis, mas a mobília do quarto é a mesma, não mudei rigorosamente nada. Ele morreu aqui em casa, na casa de banho… foi a empregada que me veio dizer que ele tinha caído na banheira e quando o vi comecei aos gritos. Ainda vieram médicos e tentámos de tudo.

RA: Foi um vazio…
SdO: Foi um vazio e no dia do funeral, o meu filho quis que eu fosse para casa dele, mas eu não quis porque era na minha casa que tinha que viver. Fiquei sozinha e sei que durante 3 anos chorei de tal maneira, que depois acabei por ir para a casa de banho chorar com uma toalha à volta da cara, porque um dia o meu vizinho bateu-me à porta com um grande ramo de malmequeres brancos porque me ouviu a chorar muito. E eu jurei a mim própria que nunca mais chorava alto e nunca mais chorei até hoje.

RA: Vamos, agora, falar de coisas mais divertidas. Dentro do seu trabalho, sei que cantar não é um trabalho ou uma profissão para si, não é?
SdO: Não é. É uma paixão.

RA: E a sua vida.
SdO: É a minha vida… são 63 anos de cantigas. Comecei aos 20 anos.

RA: Mas para lá das cantigas, a representação acabou por surgir, também, nessa época. O seu lado teatral vem muito de dentro, ou seja, a Simone por si mesma já era uma atriz, só que não o sabia, não é?
SdO: Talvez… não sei. Quer dizer, a primeira coisa que fiz foi a Tragédia da Rua das Flores, no Maria de Matos e tinha eu 42 anos. Eu cheguei a casa e contei ao Varela que o Couto Dias do Armando Cortez me tinha telefonado para fazer a peça e ele respondeu “você não tem onda de atriz para fazer isso e vai estragar as cantigas todas”… ó diacho que ele foi dizer! Ai não sou? Então vou fazer mesmo! (risos)… E tivemos 1 ano em cena, esgotados. Foi um espetáculo que amei fazer. Mas eu gosto muito de fazer telenovela. Só não trabalhei com o Vasco Santana e com o António Silva, de resto até hoje, trabalhei com toda a gente. Novos, velhos… que já partiram ou não. E não tenho nada que dizer absolutamente de ninguém, nem de um técnico e sou incapaz de não ser grata a todas as pessoas que me ajudaram a chegar até aqui.

RA: O que não é muito normal neste meio.
SdO: Pois não. (risos) Não tenho mesmo nada e mesmo a rivalidade com a Madalena (Iglésias) era muito mais criada pelos grupos de fãs que havia, do que propriamente por nós duas.

RA: E pela própria imprensa também.
SdO: Sim, também. Quando fiz o espetáculo dos 50 Anos e ela estava em Barcelona e veio, eu dei-lhe o espaço todo do Coliseu… chorámos abraçadas e tenho muita pena que ela tenha partido tão cedo… e sei que ela sofreu muito com um cancro complicadíssimo. Tenho uma pena enorme, como agora com a partida do Artur Garcia, porque na altura era a Simone, a Madalena, o Artur e o Calvário. E não esqueço! Naquela fase dos 25 aos 30 anos, dos festivais… ou cantas tu ou canto eu, quem fica em primeiro, quem fica em segundo… foram muitos dias e muitas horas por Portugal acima – Portugal abaixo, nas estradas antigas, não era como agora que há autoestradas! (risos)

 

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RA: Falando de espetáculos e andar por Portugal. O mais recente que marcou a sua carreira, foi o espetáculo sobre a sua vida. Um espetáculo que homenageia a Simone, com a Simone em palco, algo que não é vulgar ver-se, aliás acho que foi inédito em Portugal. Como foi viver esse período – do Simone, O Musical – em palco com aqueles colegas extraordinários? Um espetáculo absolutamente deslumbrante…
SdO: Eu devo isso àquela gente toda. Devo ao Tiago Torres da Silva que escreveu e ensaiou. Nos primeiros ensaios a Sissi (Martins) que fazia a Simone só chorava e eu tinha que sair para fora… ela dizia que não era capaz. Naquele espetáculo os microfones estavam sempre ligados e quando nos mudávamos nos camarins nunca houve um barrulho, uma queixa… seja do FF, da Maria João (Bastos) que fazia uma Simone maravilhosa, o José Raposo que fazia um Varela extraordinário, o Pedro Pernas, todos… tenho-lhes a maior das ternuras, a maior das amizades e devo-lhes tudo. Foram eles que construíram aquele espetáculo e que se comprometeram para que ele se fizesse. Claro que eu estava lá, com certeza… e é engraçado que eu cantava No Teu Poema sozinha e depois o Pernas entrava que fazia de David Mourão Ferreira e era sempre uma desgraça porque entrava todos dias a chorar (risos). Eu só dizia “ó homem, pela tua rica saúde tu não me faças chorar na cena!”. O Coliseu do Porto levantou-se todo, só pela minha entrada e eu ainda não tinha dito nada… fiz um esforço para não chorar, logo eu que não choro com facilidade. Eu fiquei tão estupefacta com o Coliseu esgotado e, de repente, entrei sem dizer nada… pensei “tudo valeu a pena!” Foi um espetáculo que amei profundamente.

RA: E é com esse espetáculo que se vai despedir, de uma certa maneira, dos palcos ou vai preparar alguma coisa especial?
SdO: Não. Vou preparar uma coisa especial. Será este ano, só não lhe sei dizer quando, nem como, nem a que horas e nem em que sítio. Mas, como costumo dizer, será o “last one on the road” e não quero dizer com isto que não possa cantar aqui ou ali, não é isso…, mas acho que aos 83 anos e depois de 63 anos a cantar… só me falta um prémio, que é o Prémio Revelação. (risos) Ainda há bocado pus ali mais uma medalha, porque cada um dos meus netos quer um prémio, então tenho andado a distribuir os prémios por eles. Ao meu neto que fez agora 25 anos dei-lhe o Globo de Ouro.

RA: Mas nenhum deles seguiu os passos da avó?
SdO: Não. Um é arquiteto e os outros três são engenheiros… felizmente!

RA: Felizmente? Não gostava que tivessem seguido?
SdO: Não, porque é uma vida muito dura. Nunca se sabe se se ganha ou não, se se tem contrato ou não… tudo mudou, minha querida. Desde a forma de cantar, à forma de se estar… mudou para melhor felizmente, portanto, quem está, está. Eles que sigam os seus caminhos, vão ver a avó e, normalmente, vão e choram muito.

RA: A sua filha vive já há alguns anos fora do país.
SdO: Há 35 anos.

RA: E como é viver com a distância?
SdO: Os primeiros anos foram muito difíceis e fui muitas vezes ao Luxemburgo e assisti ao nascimento do meu neto Guy que está em Berlim… o outro neto também está no Luxemburgo. Eu habituei-me muito às distâncias, porque a Eduarda foi-se embora porque é licenciada em Psicologia e queria ser psicóloga a sério e não de empresas e como não havia psicólogos nos hospitais decidiu ir embora. Foi para tradutora, porque fala várias línguas, cantou no Coro da Ópera… é doida como a mãe. (risos) Mas é uma mulher com garra e com força de espírito. Quando ela foi para o Luxemburgo, a primeira casa que teve só tinha o colchão no chão e o telefone… e mais nada. Mas hoje está ótima e de entre nós todos é a que ganha muito dinheiro.

RA: Estamos no ano em que vai fazer, digamos, a despedida formal dos palcos… um ano depois de vivermos a pandemia, que ainda perdura e que afetou tanto o mundo do espetáculo. Como é que tem vivido estes tempos, tão difíceis para os seus colegas?
SdO: Para os meus colegas tem sido dramático. Tenho o maior respeito por todos, não só por quem canta como também pelos técnicos da luz, técnicos de som e todas as pessoas que tiveram os seus empregos afetados. Felizmente eu estou reformada e a casa onde vivo é minha… eu tenho a obrigação de ser uma mulher feliz! Não me posso queixar da vida, nem dos filhos e nem dos netos. Eu tenho que agradecer todos os dias, e olhe que o faço com muita frequência… agradecer à vida, a Deus, às estrelas e ao mar, a vida que tenho e que tenho tido. Tive uma vida cheia de tudo, de bom e de mau. Tenho 83 anos, tenho saúde, que eu saiba neste momento não tenho nada assim complicado, estou sempre à espera, mas estou sempre extremamente atenta… um dos meus netos diz que tem uma avó “biónica”, porque tenho as duas ancas e um joelho… já só falta o outro! (risos)

RA: Deste lado do oceano, há uma comunidade portuguesa com muitos admiradores seus de toda uma vida. Tem alguma mensagem especial para eles?
SdO: Obrigada e tenho. Tenho o maior respeito por quem vai para fora do país. Eu vou-lhe dizer uma coisa, eu não era capaz de viver fora de Portugal… eu fiz de tudo para cantar fora. Cantei na Inglaterra, no Brasil, no Moçambique, na Angola, na Argentina, no Canadá cantei no bar de um hotel em Toronto por mero acaso, porque estávamos lá para cantar para os portugueses e havia um pianista que perguntou quem éramos e que língua estávamos a falar e dissemos que éramos portugueses e que éramos cantores e ele disse que também cantava e perguntou-me se sabia alguma canção em inglês e eu disse que sabia a Summertime e cantámos juntos. O bar era enorme, tinha umas 500 pessoas e começaram-se a calar. Há uma senhora que estava no bar e que já estava com uns copinhos, que veio ter comigo e agarrou-se às minhas mãos a chorar. Claro que mais ninguém pagou nada naquele bar de hotel. (risos) O pianista depois deu-me um papel e pediu-me só para o ler quando chegasse a Portugal, que ainda está ali guardado num sítio que diz Não Deitar Fora e Não Rasgar, e que começa por “You are the best”. (risos)

RA: Eu acho que ele tinha toda a razão, a Simone é The Best.
SdO: Não sou nada. Eu sou eu, Simone e canto cantigas. Mais nada. O resto foram todas as pessoas que puseram. A todos os portugueses o meu abraço, a minha ternura… ainda um dia gostava de voltar a Toronto cantar. Um grande abraço a todos os portugueses que moram no Canadá e que não se esqueçam da língua, da bandeira, do hino e quer se goste ou não… do Presidente da República.

Entrevista conduzida por Madalena Balça

MDC Media Group

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