Filha da Tuga
Alemanha e Nigéria assinaram um acordo para a devolução dos “Bronzes de Benim”, artefactos que foram roubados pelos soldados britânicos no final do século XIX, do palácio real do antigo rei do Benim e que estarão espalhados um pouco por todo o mundo. A devolução de bens culturais adquiridos ilegalmente, no contexto colonial, é um exemplo que deve ser seguido e que pode contribuir para a mitigação da efetiva “apropriação cultural”.
Entendo que o conceito de “apropriação cultural” deverá ser aplicado quando há uma intenção de explorar ou dominar outra cultura. Nesta perspetiva, estar-se-á, por força das guerras identitárias, a utilizar abusivamente este conceito, desvirtuando-o.
Assistimos ao policiamento da cultura não por parte de um Estado autoritário, mas da sociedade, de alguns cidadãos que incorporam a cultura woke que explodiu com o movimento Black Lives Matter. A internet tem-se tornado num grande tribunal, o lugar de todos os juízos. As redes sociais são, em alguns momentos, uma espécie de inquisição moderna. No conforto do lar e sob anonimato, os trolls procuram um passo em falso, preferencialmente de alguém mediático, e partem, sem dó nem piedade, para o linchamento público tão do agrado da “turba ululante de ativistas de sofá“. Os media também dão o seu contributo. Num tempo em que a interatividade digital obriga a reagir rapidamente, sem tempo para reflexão, amplificam alguns casos e dão-lhes um caráter mediático. A liberdade de odiar tem vindo, progressivamente, a fazer um caminho perigoso.
As tribos digitais decidiram, desta vez, atacar a atriz Rita Pereira que namora com um negro com quem tem um filho. Os “polícias do look” não aceitaram que a artista tenha feito tranças e as exibisse, na sua página do Instagram, ao som de “Filha da Tuga”, legendando: “Aproveito para partilhar convosco o novo som da querida Irma “Filha da Tuga”, que está tudo de bom, positivo e a mensagem que todos devem escutar com atenção. ADORO!!! E descreve a realidade de muitos dos meus amigos que, vezes sem conta já ouviram: “Vai para a tua terra”. A todos vocês que um dia passaram por isso, eu grito bem alto: FICA AQUI, NA TUA TERRA!!! One love.”
Uma mulher branca que use tranças ou rastas estará a fazer algo de errado? Uma mulher branca não pode ser antirracista? Esta situação não é inédita, celebridades internacionais foram obrigadas a desculparem-se por terem ousado fazer um penteado afro: Kim Kardashian; Pharrel Williams; Lana Del Rey, Marc Jacobs; Katy Perry. Katy Perry, em entrevista a um membro do movimento Black Lives Matter, chegou mesmo a dizer que a sua cor de pele a impede de identificar-se como uma mulher negra que usa tranças: “Nunca poderei entender o que isso representa, por ser quem sou. Mas, posso tentar educar-me.” Os novos “inquisidores” também não dão tréguas às influencers que ousam bronzear-se demasiado ou aumentar as nádegas para terem um “ar” mais black. Estas ações são rotuladas de nigger fishing (pesca de negros). Quem ousar apresentar caraterísticas que não correspondam à sua origem genuína corre o sério risco de ser insultado e intimidado. “Se uma branca não pode copiar o penteado da sua amiga negra em sinal de solidariedade com todas as vezes em que esta foi discriminada por causa dele, não se vê bem como pode dar-lhe a mão para se juntar a uma luta comum.” (Eugénia Galvão Teles, Expresso)
Vivemos tempos estranhos, o antirracismo parece estar um pouco à deriva. Se o objetivo é erradicar o preconceito, todas nós somos chamados à ação, usando as nossas potencialidades. O Marc Jacobs não tem que pedir desculpas por ter penteado as suas modelos com rastas de todas as cores, a Rita pode usar o penteado que bem lhe aprouver e dançar ao som da música que quiser, um escritor branco ou uma ilustradora branca podem e devem publicar livremente livros contra o racismo e um artista pode fazer uma instalação antirracista. A fobia à mescla cultural e a opção pela via do exacerbar das identidades não nos conduzirá à desejada igualdade.
Deixo uma sugestão de leitura: “Teorias Cínicas: como os ativistas académicos reduziram tudo a raça, género e identidade – e como isso nos prejudica, de Helen Pluckrose e James Lindsay” (Guerra e Paz, 2021).
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