A Avó deixou de cantar
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A Avó deixou de cantar

REVISTA AMAR - A Avó deixou de cantar
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Minha terra de origem é Santa Vitória, de lá saí com cinco anos. As lembranças que tenho dessa pequena aldeia do concelho de Beja estão associadas aos meus avós paternos que aí viveram toda a vida.

A memória mais antiga que guardo é a de me sentar nas pernas do meu avô paterno, António Inácio, e pedir: ‘’Avô, cante a da velhinha … “ Então, ele balouçava as pernas com força e cantava: “Era uma vez uma velhinha que andava a varrer, com a vassourinha na saia a bater … “ Invariavelmente, o avô chamava também a avó Antónia, insistindo para cantar com ele; ela limitava-se a sorrir e a olhar para nós. Quando o baloiçar terminava, o avô repetia o que eu já ouvira, sempre com a mesma vaidade na voz: “A tua avó era a moça com a voz mais linda do Alentejo. Na monda e na ceifa, era ela quem alegrava o pessoal fazendo esquecer a dureza do trabalho. Sabia cantar ao desafio melhor do que qualquer homem. Até o lavrador vinha do monte e pedia para ela cantar com ele”.

Guardo a imagem dessa minha avó Antónia, de semblante triste e toda de preto. Ouvi que tinha sofrido um grande desgosto na vida – perdera, de forma trágica, o mais novo dos seis filhos, o meu tio Manuel, em memória de quem ganhei o nome ao ser batizada. A morte aconteceu muitos anos antes de eu nascer. Cresci a ouvir dizer que ele se suicidara devido a uma paixão não correspondida por uma linda moça da aldeia de Santa Vitória. “O infeliz rapaz morreu de três mortes”, assim me contavam em criança. Passei anos a fazer perguntas para tentar compreender essa impossibilidade, até ao dia em que entendi o que se passara. Na primeira tentativa de suicídio, atirou-se para a linha do comboio. Conseguiu sobreviver, mas ficou sem pernas. Viveu mais alguns anos, cada vez mais amargurado e obcecado com a ideia de morrer. Não suportando a ideia de poder fracassar uma segunda vez, preparou uma forca, enrolou a corda ao pescoço e deu um tiro a si mesmo. Parei então de fazer perguntas à minha avó, compreendendo o desgosto dela e respeitando o seu silêncio.

A casa da minha avó, na Rua da Eira, era toda branca, com muitas camadas de cal acumuladas nas paredes, sem janelas e com uma porta de postigo. Desciam-se dois degraus para entrar na sala, mobilada com cadeiras de buinho, de costas e pés pintados de vermelho e desenhos de florzinhas. Sobre uma cómoda alta a condizer, retratos de família em molduras de madeira, ladeados por jarrinhas de porcelana com flores frescas, acolhiam os visitantes. A sala dava para o quarto dos avós onde a cama larga de ferro, com cabeceira de caracóis, estava encostada à parede. Adorava quando ela me deixava ajudar a fazer a cama, usando uma cana grossa para bater no colchão de lã e nas roupas de cama para tudo ficar muito “direitinho”. A avó guardava as mantas e outras roupas numa arca de madeira com maçanetas de latão que polia com força até brilharem.

Da sala, descia-se um degrau para a cozinha, onde comíamos à volta duma mesa em cadeiras baixas, junto da lareira; um poial comprido com os cântaros de barro da água e um lavatório de ferro completavam o recheio. A cozinha dava para um quarto de camas de ferro estreitas, com colchões de folhas de milho, onde os netos dormiam sempre que iam ver a avó.

Lembro o carinho com que a avó me acolhia e aos meus primos nas férias grandes. Depois de fazer, a nosso pedido, “popias caiadas”, ela pendurava-as, numa cana suspensa entre duas cadeiras altas, para secar a camada grossa de açúcar glacé. Permitia que nos deitássemos no chão de pedra da cozinha, coberto por jornais velhos, para apanhar, nas bocas gulosas, as pingas de açúcar.

Da cozinha da avó, descia-se para um piso com mais quartos. Havia uma porta que dava para um grande quintal, com figueiras, nespereiras e tangerineiras, árvores que conseguíamos trepar para apanhar a fruta. Galinhas, pintainhos e galos debicavam à solta, e corriam à nossa frente quando a avó nos mandava ver se havia ovos. Basta fechar os olhos para evocar o cheiro a frito e o sabor das fatias de ovos que nos fazia pela manhã, e nos servia adoçadas com mel.

A minha avó não sabia ler, mas à hora de dormir, contava-nos histórias de princesas, lobisomens e fantasmas que nos imobilizavam de encanto. Como a sua voz era suave, depressa adormecíamos.

Guardo ainda da avó de Santa Vitória a imagem da sua pele branca e do cabelo grisalho que me deixava pentear, depois de desfeito o carrapito. Sentávamo-nos, então, na sala de entrada, e eu aproveitava aqueles momentos para lhe fazer muitas perguntas sobre as fotografias, os objetos sobre a cómoda e os quadros nas paredes. Ela respondia, por vezes, com um sorriso aberto que me surpreendia. Dela, herdei, além das memórias, uma das jarrinhas da cómoda, de asinha quebrada, mas para mim valiosa como ouro.

Manuela Marujo

Texto extraído da obra “Avós: Raízes e Nós” de Aida Batista, Ilda Januário e Manuela Marujo publicada pela editora Alma Letra

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