Patrícia Mamona
“… nós não escolhemos o país onde nascemos, mas podemos escolher onde queremos viver (…) onde sabemos que podemos contribuir positivamente, não só pensar na nossa sobrevivência como também para o desenvolvimento do próprio país.”
Patrícia (Mbengani Bravo) Mamona nasceu em São Jorge de Arroios, Lisboa, a 21 de novembro de 1988. De ascendência angolana, é filha de um funcionário da IBM e de uma auxiliar de enfermagem. Aos 13 anos, quando o pai emigrou para Inglaterra, Patrícia ficou em Portugal com a mãe e as irmãs. É por volta desta idade, que se destaca no atletismo em provas escolares que proporcionaram o convite pelo professor José Uva, a ingressar na Juventude Operária do Monte Abraão (J.O.M.A.), que representou entre 2002 e 2010. Desde 2011, representa o Sporting Clube de Portugal. O professor José Uva é desde então o seu treinador, considerando-o um segundo pai.
Em criança, Patrícia sonhava ser veterinária, mas depressa se apercebeu que queria seguir Medicina e ser médica, apesar do amor por animais – de que Phoenix, o seu gatinho, é testemunha. Chegou a ganhar uma bolsa de estudo nos Estados Unidos da América onde frequentou a Pre-Med School na Universidade Clemson, Carolina do Sul. Nos 5 anos que a frequentou, teve oportunidade de pôr em prática a formação que teve na J.O.M.A. e fez “alguns pontos para a equipa e por acaso (riso) saiu-me o recorde nacional”, no circuito universitário americano.
Em 2012, sem tempo de preparação no Triplo Salto, no Campeonato Europeu de Ar Livre, em Helsínquia, a atleta portuguesa acabaria por ser medalha de prata, por apenas 2cm. Este resultado viria a mudar o rumo da vida profissional de Patrícia, focando-se em específico nesta modalidade desde então.
No dia 10 de julho de 2016, no Campeonato Europeu de Atletismo, em Amesterdão, saltou 14,58m, conquistando a medalha de ouro e estabelecendo um novo recorde nacional de Triplo Salto feminino. Este feito foi reconhecido e recebeu a Comenda da Ordem de Mérito, pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa que lhe entregou a insígnia a 13 de julho. No mesmo ano, a 14 de agosto, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, terminou a competição na 6ª posição, obtendo assim a melhor classificação de sempre do Triplo Salto feminino português.
No Campeonato da Europa de Pista Coberta em Belgrado, em 2017, Patrícia, mesmo sendo a atleta mais preparada, fez um honroso 2º lugar. Este resultado deveu-se a um acontecimento inédito na sua carreira – um toque na tábua de chamada, que lhe “custou” uma penalização de cerca de 20 a 30cm no resultado final.
No dia 7 de março de 2021 ganhou a medalha de ouro no Triplo Salto no Campeonato Europeu de Atletismo em Pista Coberta em Torún, com a marca de 14.53m, após ter lutado contra a Covid-19 em janeiro.
Patrícia Mamona é uma atleta de excelência, humilde e simpática que se considera uma pessoa “bastante relaxada (…), mas também tenho momentos em que estou triste ou enervada”. Caseira, gosta de assistir a séries nos tempos livres, no seio do seu lar e na companhia do namorado, Diogo Antunes.
Revista Amar: Quando se ouve o nome Patrícia Mamona, associamos o rosto ao atletismo. Mas quem é a Patrícia Mamona fora das pistas?
Patrícia Mamona: É uma pergunta um pouco difícil de responder porque, sinceramente, eu acho que o muito que sou hoje é, obviamente, influenciado pelo atletismo. Já faço isto há 20 anos, tenho 32 anos agora e, obviamente, tudo o que me rodeia e todas as minhas experiências, que muitas delas foram baseadas e foram proporcionadas por causa do atletismo, ou seja, o atletismo faz parte da minha identidade. Fora isto, sinceramente, sinto que sou uma pessoa “normal”, sou uma pessoa trabalhadora – é que às vezes as pessoas pesam que “ela nasceu com talento e que as coisas apareceram”, mas não… acho-me uma pessoa a que se chama comum (…) às vezes as pessoas têm a tendência de me meterem num nível superior, o que não corresponde à verdade! Porque, sinceramente, eu sou igual aos outros. Tenho oportunidades e crio as minhas próprias oportunidades, por isso acho que sou bastante trabalhadora. Confio muito na minha pessoa e na minha capacidade, porque acho que como ser humano, todos temos capacidades para fazer coisas extraordinárias e não é só para um grupo restrito de pessoas e acho que pelo facto de acreditar nisso, já faz parte da minha personalidade, e isso faz muita diferença em tudo que tenho feito e em todas as minhas conquistas… não só ao nível do desporto, como também ao nível pessoal. Se calhar muitas pessoas, à primeira vista quando olham para mim, podem pensar que sou… não uma pessoa arrogante, mas fechada… porque até sou de certa forma um pouco fechada e reservada, principalmente nas alturas em que preciso de me focar, porque todos estão um pouco habituados a verem-me em períodos de foco total, em que o foco é extremamente importante para conseguir fazer uma boa performance, mas fora disso sou bastante relaxada, sou simpática… acho eu que sou simpática (riso)… também tenho momentos em que estou triste ou enervada, mas sou normalmente sou calma. Sou muito caseira, gosto muito de estar em casa – acho que talvez até porque estamos sempre ou a treinar ou a viajar e quando digo a viajar não é viagens de lazer, é obviamente a competir! Claro que uma das coisas boas do atletismo é conseguir ir a vários países, mas ao mesmo tempo fico triste porque normalmente só vejo os aeroportos, a pista e o hotel (risos)… não há muito tempo para conhecer a cultura das cidades e dos países para o qual viajamos. Mas sou muito caseira, gosto muito de passar tempo em casa os momentos tranquilos. Infelizmente a minha família não vive cá, mas sempre que posso gosto de os visitar. Gosto de estar em casa com o meu bichinho, gosto de animais…
RA: Tem alguma animal de estimação?
PM: Tenho um gatinho e ando a pensar no segundo já há algum tempo, mas como viajo muito, às vezes torna-se complicado arranjar alguém que tome conta do meu gatinho. Vou ficar só por um, mas acho que ele também merece alguma companhia, principalmente agora que regressei dos europeus… por alguma razão parece que o gatinho sentiu que eu estive muito tempo fora e desde que cheguei não me quer largar (…).
RA: Com que idade descobriu o atletismo?
PM: Eu já era extremamente ativa quando era nova e experimentei vários desportos, nomeadamente o karaté, experimentei o ballet, mas detestei porque achei que era extremamente feminino para mim (risos) e eu era, na altura, muito menina-rapaz e queria coisas um pouco mais “agressivas”, contudo hoje em dia se eu pudesse… também tenho fascínio e gosto muito de ver ballet e do sacrifício que é tudo aquilo, aliás o Triplo Salto é muito parecido nesse sentido porque quando olhas para o ballet olhas para uma “coisa” muito graciosa, mas o trabalho que está por detrás é muito duro e o Triplo Salto é um pouco parecido nesse sentido, porque é uma disciplina muito violenta, mas quem olha por fora acha que aquilo parece fácil “ah, parece que fazes aquilo fácil Patrícia!”. Porém, aos 13 anos foi quando comecei a fazer atletismo, embora já fazia desporto escolar e nas aulas de Educação Física foi onde me destaquei, porque era muito pequena em altura, pelos mais do que agora (riso) e o meu professor de Educação Física percebeu muito cedo que eu tinha talento para o desporto, eu até ganhava aos rapazes. Entretanto fui representar a minha turma no corta-mato da escola e ganhei o corta-mato escolar e foi nessa altura que fui convidada pelo meu atual treinador, que é o meu treinador desde sempre, a ingressar no Clube da J.O.M.A.. Foi por essa altura que descobri o atletismo.
RA: Quer dizer que o José Uva é que a acompanha desde os 13 anos?
PM: Correto!
RA: Já é um segundo pai…
PM: É e eu digo sempre isto também, porque, e como já disse, muitos dos meus valores que aprendi ao longo do meu crescimento foram do meu professor e devido ao atletismo e das pessoas que me rodeiam. Na altura, por volta dos meus 13 anos, o meu pai emigrou para a Inglaterra à procura de melhores condições de trabalho e, entretanto, eu estava em Portugal com a minha mãe e as minhas irmãs e como passava muito tempo com ele, muito do que aprendi, não só de atletismo como pessoa também, foi com o meu treinador e ele foi sempre muito presente… lembro-me de um natal em específico em que eu queria um telescópio, que para a minha mãe ainda era um bocadinho pesado em termos financeiros, e o professor descobriu isso e ofereceu-mo. Então foi sempre assim, até hoje, uma relação muito especial que transcende um bocadinho a relação treinador-atleta… somos muito amigos e muitos, muitos dos momentos especiais não só associados ao atletismo são passados com ele e é basicamente isto que digo, que o meu treinador é como um segundo pai.
RA: Essa vossa ligação de amizade também é muito importante para o sucesso de um atleta, certo?
PM: Sem dúvida e eu acho que dos grandes atletas que Portugal já teve, existe muito deste historial porque, acima de tudo, há que ter confiança no trabalho que ambos estão a fazer… eu tenho que estar confiante que o meu professor vai fazer o melhor planeamento possível para eu saltar no meu melhor e da mesma forma que ele tem que confiar em mim e saber que eu fisicamente e psicologicamente vou dar o meu melhor para o mesmo objetivo. Ou seja, nós temos que ter exatamente o mesmo objetivo e para ter o mesmo objetivo tem que haver uma grande confiança, eu no trabalho dele e ele no meu trabalho. Depois temos, os dois também, que ter esta mentalidade de trabalhar, é que só com trabalho é que conseguimos atingir objetivos. Sabemos também que não somos perfeitos e estamos sempre, os dois, à procura de maneiras para conseguirmos melhorar a todos os níveis, não só a nível atlético e isto também vai surgindo ou vai aumentando com o decorrer do tempo porque realmente começamos a colher os frutos e percebemos que este é o caminho para o sucesso… ou para aquilo que as pessoas dizem ser sucesso.
RA: Então com 13 anos, uma menina pré-adolescente, os pais emigram para a Inglaterra e deram-lhe todo o apoio para ficar?
PM: A história bem contada é assim… O meu pai foi primeiro, mas na altura que ele foi, ele já tinha percebido que eu era uma boa atleta, embora que na cabeça dos meus pais, e acho que é o mais correto, o mais importante é a parte académica, mas da parte do meu pai senti que desde do momento que ele percebeu isso que houve sempre muito apoio. Da minha mãe se calhar foi um pouquinho menos, porque ela realmente não via o atletismo como carreira, então fazia muita pressão a nível académico, mas fizemos aqui basicamente um pacto, em que se as minhas notas escolares não descessem eu tinha então a oportunidade de poder treinar à vontade. E foi um pouco disto, também, misturado com o facto do meu pai emigrar para a Inglaterra e na altura, em Portugal, eu tinha muito boas notas na escola e ele não queria que eu interrompesse o percurso porque, na Inglaterra até ao 9º ano ou 10º, penso eu, os alunos vão para a escola por idades e pelo facto de eu ser de novembro, se fosse ia perder um ano escolar e o meu pai não queria que eu perdesse esse ano. Entretanto, durante a minha adolescência, a minha mãe e as minhas irmãs foram para Inglaterra e foi nessa altura que comecei a destacar-me e a fazer os mundiais de juvenis e fiquei com uns familiares para conseguir acabar o 12º ano com as melhores notas possíveis e só depois juntar-me à família. Só que depois cheguei a entrar em Medicina com notas quase perfeitas e os meus pais não queriam muito atrapalhar isso, e também comecei a bater recordes nacionais e os meus pais começaram a perceber que “epa, não! Esta é a minha filha” (risos) e como era uma atleta de excelência e desde muito nova destacava-me bastante no meu escalão, eles também ganharam o gosto pelo desporto e o facto de eu conseguir manter as minhas notas, para eles era um descanso… aliás até acho que o desporto foi ali uma motivação para estudar ainda mais.
RA: Praticou numerosas provas como os 100 metros Barreiras, os 200 metros e, entre outros, o Heptatlo. Para quem só tem conhecimento geral sobre o atletismo… em que consiste o Heptatlo?
PM: É o que chamamos de provas combinadas. Existe o Heptatlo para as mulheres e o Decatlo para os homens. O Heptatlo são 7 provas que são feitas em 2 dias e no Decatlo são 10 provas em 2 dias. Eu como, por acaso, tive uma boa formação na J.O.M.A. e experimentei um pouco de tudo, quando fui para os Estados Unidos aproveitei muito da base que tinha da J.O.M.A. para fazer alguns pontos para a equipa e por acaso (riso) saiu-me o recorde nacional, acho que foi do sub-23… mas não era algo que queria fazer porque os lançamentos foram sempre uma lacuna minha e não tinha paixão também.
RA: E quando é que descobre o Triplo Salto?
PM: Durante a minha formação aprendi a fazer o Triplo Salto e feitos alguns recordes em escalões mais baixos, mas decidi fazer Triplo Salto profissionalmente e só dedicar-me ao Triplo Salto em 2012, no ano dos Jogos Olímpicos, porque sem muito treino específico consegui qualificar-me para os Jogos Olímpicos e por causa de 1 ou 2cm, já não me lembro bem, não fui à final e ficou um sabor super amargo… o facto de ir ao Jogos Olímpicos e por um bocadinho não pode sentir mesmo os Jogos Olímpicos e o espírito competitivo e tudo aquilo que acho que devia de sentir nesses jogos. Não vou mentir, eu fui naquela… claro que estava contente por representar Portugal e ir a uma competição olímpica, mas mal cheguei lá percebi que queria muito mais e quando aconteceu isso nessa competição eu disse “se eu treinar a sério para o Triplo Salto e se me dedicar a isto, posso ser uma atleta ainda melhor e posso ir a uns Jogos Olímpicos, eu que afinal bato recordes nacionais” e acho que foi ali, num momento, que me decidi e com a ajuda do meu treinador, porque ele também se apercebeu. Na altura eu ainda estava nos Estados Unidos e vinha sempre no verão competir a Portugal, então falei com o meu treinador, professor José Uva, e fizemos este pacto de que ele tinha 4 anos para basicamente para me tornar nessa atleta que eu queria ser e foi isso que aconteceu (riso).
RA: Foi um grande desafio… do tipo “ou é ou não é”?
PM: Foi e obviamente que tive que deixar algumas coisas para trás, nomeadamente o curso que fiz nos Estados Unidos, porque na altura tinha que escolher entre entrar para a Medical School ou então aceitar este desafio… e deixei basicamente os 5 anos que fiz nos Estados Unidos, que foi uma experiência espetacular. Ainda pensei em continuar lá, mas as condições que tinha em Portugal e o treinador iam conseguir-me levar à Patrícia que sou hoje e por acaso tudo isso tem acontecido. E pronto, decidi regressar a Portugal para esta aventura e também se corresse mal podia sempre voltar… eu sou daquelas pessoas que “se correr mal, não faz mal, é tipo uma experiência”.
RA: A Medicina e o atletismo, são os 2 sonhos de menina?
PM: Sim… desde muito nova e lembro-me que a primeira coisa que disse ao meu pai foi “pai, tive um sonho e operei uns sapos e um sapo começou a saltar”… basicamente queria ser médica -veterinária, mas percebi logo a seguir que não era veterinária que queria ser e era mesmo médica. E foi desde pequenina sempre a pensar neste sonho. Depois houve uma altura, especialmente quando eu entrei em Medicina em Portugal, que eu percebi que, e já aí sabia que o atletismo era uma paixão, ia ser muito difícil conseguir conciliar as duas coisas, principalmente em Portugal, depois também não tinha transporte e os horários eram super complicados e eu tinha que decidir entre um e o outro. Entretanto, ganhei essa bolsa para os Estados Unidos, que para mim foi tipo um “holy grail” (riso), porque lá tinha um plano próprio e conseguia conciliar as duas coisas. Este sonho esteve sempre muito presente, embora quando regressei a Portugal depois de ter feito o Pre-Med e pelo facto de não ter equivalência deixei um bocado esta parte para trás, porque o atletismo surgiu e se era para ser atleta “tinha que ser agora” e agora ainda gosto muito mais. Também sei que o atletismo é uma coisa que não vai durar para sempre, por isso tenho que aproveitar este momento, tenho que aproveitar agora que tenho força, que sou jovem e estou no pico de forma para ser a melhor atleta possível… mas continuei com aquele sentimento que me faltava qualquer coisa adicional porque me lembro que, nesse ano dos jogos, foi um ano em que eu estava contente por treinar, mas que sentia que precisava intelectualmente de algo mais e logo no ano seguinte fui procurar um curso que eu sentisse que fosse muito parecido com a Medicina, mas que não puxasse muito, a nível de horários, por mim e então escolhi a Engenharia Biomédica, que é o curso que estou a fazer agora. Infelizmente com isto do Covid-19 e com os Jogos Olímpicos – com os jogos normalmente não estudo – já implica ficar estes 2 anos sem estudar, mas espero já em setembro regressar para o curso e terminar o mais rápido possível, dentro de 1 a 2 anos no máximo. E pronto, ainda digo hoje que estou com o bichinho da Medicina e nunca se sabe… também para aprender nunca é tarde e quem sabe depois da Engenharia Biomédica ainda vou pensar regressar à Medicina.
RA: Nunca pensou criar raízes nos Estados Unidos? Fala-se tanto no sonho americano e do “uncle Sam” … ou Portugal é o seu porto seguro e como o é para tantos outros emigrantes que regressam ao fim de 1 ou a 2 anos?
PM: Eu não vou mentir que tive uma experiência espetacular nos Estados Unidos, mas há qualquer coisa na cultura americana que não clica comigo e eu sempre gostei de Portugal. Eu lembro-me que sempre que regressava nas férias era maravilhoso! Assim… a música, ir ao café, as pessoas, o clima, a cultura e depois o facto, do tipo, aterrar em Lisboa, mas se quiser ir para um lugar mais reservado tinha a duas horas de Lisboa, o Alentejo e estar na minha, nas calmas e sem muito estresse, mas se quisesse ir a uma praia fantástica ia ali para Sesimbra… e percebi que Portugal é um país que tem tudo num espaço tão pequeno e obviamente que sinto que aqui é casa, não há sítio melhor para viver. Para mim os Estados Unidos é um país extremamente materialista e eu não me sinto muito à vontade pelo facto de estar sempre e constantemente a dizer que “o meu casaco é assim, os meus sapatos valem isto ou custa isto” … é uma coisa muito normal e entranhada na cultura deles, mas com o qual não me identifico. Obviamente que gosto de ter coisas de qualidade, mas não tenho que constantemente expor isso e não me senti à vontade com esse espírito. Depois, ainda por cima sou de Lisboa e para mim Lisboa é o top 1 das cidades! Também percebi que não somos um país rico, mas que com pouco conseguimos fazer coisas maravilhosas. E foi isso, gostei muito da minha experiência na América, mas pessoalmente não trocava por Portugal e acho que o sonho americano também é, um pouco, uma ilusão, mas também é para quem realmente consegue, porque não é fácil. Também me apercebi que estar na América não é sinónimo de ter tudo ou ser rico ou ter sucesso… se calhar é, para 1% dentro da população que está lá a viver, mas é a única coisa que transparece e que passa cá para fora e é depois a sensação que nós temos sobre toda a gente da América…
RA: … mas isso é um pouco culpa do filmes, séries, etc. que só mostram a parte bonita, não é?
PM: Muito, muito e depois chegas lá e vês, totalmente, o contrário… aliás percebes, se calhar, que o contrário é mais prevalente e em que dificuldades em que estão, mas hoje em dia já consegues perceber, ainda por cima com estas coisas da política e “Trumps” que a América realmente não é aquilo que nós pensávamos que era, por isso eu, pessoalmente, estou no sítio certo, “abanquei-me” aqui onde tenho o melhor treinador que acho que é melhor para mim. Se calhar a coisa que mais me custa é de facto da minha família não estar presente e cá, em Portugal, que implica estar afastada deles por muito tempo, mas eles percebem que isto é o meu trabalho e que estou a conquistar o meu sonho.
RA: Sendo filha de pais emigrantes e uma menina, mulher hoje, que já foi emigrante para estudar, qual é a sua opinião pessoal sobre o estigma que existe, em Portugal, sobre os emigrantes?
PM: É muito simples… nós não escolhemos o país onde nascemos, mas podemos escolher onde queremos viver (…) onde sabemos que podemos contribuir positivamente, não só pensar na nossa sobrevivência como também para o desenvolvimento do próprio país. Eu acho que o emigrante quando vai, em regra geral, para outro país, obviamente vai à procura de melhores condições de vida, mas em troca do seu trabalho e quer se sentir integrado na cultura, porque se identifica com a cultura (…).
RA: Aos 18 anos, fez um honroso 4º lugar no Campeonato do Mundo de Atletismo em Pequin. A partir daí bateu recordes pessoais nas diversas modalidades e em Helsínquia faz o 2º lugar em Campeonato da Europa de Atletismo com o Triplo Salto. A 1ª medalha de ouro chega em 2016, no Campeonato da Europa de Atletismo em Amsterdão, estabelecendo um novo recorde nacional de Triplo Salto feminino e este feito foi reconhecido pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa, condecorando-a com a Ordem do Mérito. O que pensou quando recebeu a insígnia… foi “já estou onde queria estar” ou “já cheguei aqui, mas quero mais”?
PM: Faz parte do meu “mote” e é a minha maneira de pensar que não gosto de conformismos e de estar num sítio estável e nem de viver do passado. Eu gosto sempre de olhar para a frente e ver os objetivos e os desafios que me levam para a frente, porque acho que isso também dá vida à minha vida e dá uma direção àquilo que quero ser e eu como sei que não sou perfeita, sei que há sempre qualquer coisa para melhorar. E, obviamente, no nível em que estou ainda há muitas coisas que eu posso fazer, muitas coisas para melhorar, há muitos títulos para conquistar como este, por exemplo, fui campeã da Europa pela segunda vez, mas numa categoria diferente (…) e acho que mesmo que fosse campeã olímpica ia querer ser campeã olímpica outra vez, ou seja, eu estou sempre a pensar no que vem a seguir e não tanto conseguir uma coisa para depois deixar as coisas abananar, até porque a vida não pára ali… a vida tem que continuar, eu tenho que continuar. Para mim é muito importante ter uma direção e até gosto mais do processo, obviamente que gosto de ganhar, mas o processo também é muito enriquecedor e dá sentido à vida, para depois poder dizer “sim! Tive uma vida feliz, (…), fiz aquilo que gostava de fazer e não tenho arrependimentos”.
RA: Depois de um ano memorável, em 2017 no Campeonato da Europa de Pista Coberta em Belgrado, fez um honroso 2º lugar. Sem tirar o mérito, esta medalha de prata soube a pouco ou faz parte?
PM: É as duas coisas… faz parte, mas quando sai desse campeonato as primeiras pessoas que eu e o meu treinador vimos foi a vencedora alemã e o treinador, que me disseram “devias ter ganho”, porque realmente naquela competição eu era a melhor atleta que estava lá e a mais consistente, mas tive a infelicidade de tocar na tábua de chamada, que nunca me tinha acontecido, que me fez perder 20 a 30cm, ou seja, naquela competição foi um pouco de azar, mas são as regras do jogo… quem saltar mais a partir da tábua é que ganha, por isso soube-me a pouco, no sentido em que eu realmente não consegui demonstrar a 100% o que estava a valer…
RA: Ou seja, não conseguiu mais por causa de um erro técnico e não físico…
PM: Exato, mas são as regras.
RA: Há 1 ano entrámos todos em confinamento e o mundo parou. O que é que significou isso para a sua vida profissional?
PM: Acho que até se calhar vou ser das poucas atletas a dizer que não afetou muito, obviamente que afetou porque estava confinada… de repente estar fechada afetou a mim como a todos os portugueses, mas na minha cabeça… eu só pensava “o que posso fazer, para que este confinamento seja o mais parecido com a vida normal? Para que perdesse menos treinos e menos forma” e estava sempre a pensar positivamente, porque na altura, quando nós entrámos em confinamento, os Jogos Olímpicos ainda não tinham sido cancelados, ou seja, nas nossas cabeças tínhamos que continuar a dar tudo para estarmos preparados para Tóquio 2020 e eu, obviamente, tentei simular num espaço pequeno daquilo que seria a minha normalidade, claro que não podia saltar para uma caixa de areia, porque não tenho uma pista de areia em casa, mas tenho aqui um parquezinho com relva e ia saltar para lá. A nível psicológico acho que foi complicado, mais porque a minha mãe como trabalha com muitos pacientes com Covid-19 e estando longe, era o que me preocupava mais. Contudo, tive muito apoio e faço, com alguma frequência e algum tempo, treinos e preparação a nível psicológico e mental. Tive muita ajuda, especialmente nessa altura do confinamento, dos meus psicólogos em dias diferentes e online, o que era possível. Eu tive sempre ali algo a que me pudesse agarrar e dizer ou falar sobre aquilo que estava a sentir psicologicamente e rapidamente conseguia encontrar estratégicas mentais para não me ir abaixo e estar sempre a pensar no positivo para depois estar bem e ir aos olímpicos. Por isso acho que o facto de já ter alguma capacidade mental e emocional em transformar coisas negativas em coisas positivas e em superar desafios, foi uma “bagagem” positiva passar este confinamento.
RA: Em janeiro, aproximadamente sete semanas antes do Campeonato da Europa de Pista Coberta em Torún, testou positivo à Covid-19. Fez o teste porque desconfiava que algo não estava bem consigo ou apenas por descargo de consciência?
PM: Eu fui fazer o teste porque no grupo de treino do meu namorado, que também é atleta, alguém testou positivo e ele entrou em quarentena. Como estava sempre com o meu namorado entrei em quarentena por precaução. Entretanto, como era o contacto do contacto, se fizesse um teste de PCR e desse negativo eu podia seguir com a minha vida e obviamente que ele tinha que continuar por ser contacto direto.
RA: Da lista extensa de sintomas provocados pelo vírus, quais é que teve?
PM: Fiz o PCR e no dia seguinte deu positivo e no mesmo dia, não sei se foi por causa do estresse, comecei a ter sintomas e na altura falei com os médicos e com a Direção Geral de Saúde e no meu primeiro relatório disse que tinha uma tossinha e pensei que se fosse só isso estava bem e como já tinha prática em treinar em confinamento, portanto não ia ser problema nenhum passar 10 dias em casa… mas enganava-me eu, porque a cada dia que se passa as coisas complicavam-se mais. Logo na noite seguinte comecei a ter muitas dores de cabeça, muitas dores nos olhos principalmente quando olhava para os lados e para cima, depois vieram as dores musculares, as náuseas e perdi completamente o apetite. Mas foi quando vieram as dores musculares que comecei a entrar em stress porque fiquei fraca e não me conseguia levantar, mas também não conseguia estar deitada que as dores eram constantes e o facto de ter dores, não conseguir fazer nada e queria só dormir, contudo também não conseguia dormir porque só sentia dores e fui piorando. Depois tive muita tosse com muita expetoração e tinha que ter um boião com água quente para fazer vapores e como estava cada vez pior foram momentos muito complicados e estressantes. Até cheguei a pensar que se continuasse assim que poderia parar no hospital, porque como estava com muita expetoração estava com medo de ter uma pneumonia. Houve uma altura que mentalmente quase que desisti… foi terrível.
RA: No fundo, estava a ver a sua vida a andar para trás?
PM: Eu já nem pensava em atletismo… eu já só pensava “aí meu Deus, isto está a piorar… será que vou ser daquelas pessoas que, infelizmente, vai parar ao hospital”… eu nem queria acreditar.
RA: … e como uma jovem saudável e uma atleta de alta competição em forma, não fazia sentido, não é?
PM: Exatamente!… como é que isto poderia estar a acontecer a mim?
RA: E quando é que começou a sentir melhorias?
PM: A partir do 6º ou do 7º dia comecei a sentir um pouco de “paz”, porque disseram-me que era nessa altura que os problemas respiratórios começavam a aparecer. Como conseguia respirar e para além da expetoração não me estava a aparecer mais nada, fiquei mais calma. Custava-me muito quando a minha família e o meu treinador me telefonavam todos preocupados a perguntar como me sentia e eu dizia “eu sinto-me mal”…
RA: Não passou “paninhos quentes” …
PM: … porque eles estavam, obviamente, sempre esperançados que cada dia que passasse eu melhorasse e eu a cada dia que passava dizia que estava pior, o que também era estressante para eles até ao 8º dia, porque nesse dia aconteceu uma melhoria. Entretanto tinha tomado alguns anti-inflamatórios que não fizeram efeito, mas depois de um mais forte comecei-me a sentir com alguma energia e levantei-me… ainda não conseguia tocar com as mãos nos pés… quer dizer, nem nos joelhos! Parecia uma daquelas velhinhas (risos) que quase não se consegue mexer, mas só o facto de já estar de pé… ah! Também perdi o cheiro e o paladar na altura que comecei a ter fome e tudo sabia a nada (riso), mas depois de uma semana e meia já tinha recuperado o cheiro e o paladar. E foi assim que aquele plano de ficar a treinar em casa durante os 10 dias foi por água abaixo e como o meu sistema muscular estava enfraquecido ao ponto de nem conseguir levantar as pernas ou um joelho e pensei “esquece lá os jogos, tens é que pensar em ficar bem e depois vê-se” (…).
RA: Tinha conhecimento de alguém próximo que já tivesse tido estes sintomas antes de lhe ter acontecido?
PM: Por acaso não, mas quando eu tive houve ali um surto entre os atletas que estiveram junto daquele que deu positivo. O meu namorado estava tranquilo porque só teve febre e uma dor de cabeça um pouco fora do normal, mas não passou disso. Mais tarde quando regressei à pista houve reportórios de atletas em que disseram que nem tiveram assim tantos sintomas, mas que lhes estava a custar regressar e a ser extremamente difícil. Houve atletas que tiveram Covid-19 no ano passado e que até hoje têm sequelas e pela minha cabeça só passava “é isto que vai acontecer comigo!”. Eu tive alta e ia para os treinos medicada e mesmo assim não conseguia levantar os joelhos… se o meu básico era correr e nem isso conseguia como é que eu ia pensar em saltar. Por outro lado, também houve atletas que disseram que testaram positivo e que não tiveram sintomas e que foi como nada tivesse acontecido.
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RA: Acha que aprendeu alguma lição?
PM: O que fiquei a perceber é que isto é tudo muito alienatório… pode acontecer a qualquer pessoa e a lição mais importante é que pode acontecer contigo e por isso é importante protegeres-te o máximo possível e não te refugies no pensamento que és saudável ou atleta porque isso não te protege de nada. O que também não consigo perceber é que tivemos casais de atletas, que fazem tudo juntos, em que um deles testou positivo e o outro não… ainda não se consegue perceber como o vírus funciona.
RA: Mas, entretanto, recuperou e conquistou, muito recentemente, mais uma medalha de ouro na prova do Triplo Salto do Campeonato da Europa de Pista Coberta em Torún. Foi a vitória mais “saborosa”?
PM: Sem dúvida. Contudo, não foi o momento tecnicamente mais alto, porque já fui campeã da Europa de Ar Livre, mas olhando para o passado e para a própria competição, foi porque ganhei por 1cm… foi um stress não só para mim, mas especialmente para quem estava em casa, porque conseguiam de fora ver todas as atletas a saltar e ficaram naquele suspense “será que passou? Meu Deus, será que não passou por 1cm?”. Foi extremamente emotiva, foi um momento de orgulho, foi uma lição de vida… quando estamos em momento baixos e que não acreditamos muito em nós, há sempre uma luzinha no fundo do túnel e que se formos em direção a ela, as coisas podem realmente acontecer. Claro que agradeço o apoio de todos e estas últimas semanas têm sido espetaculares, mas agora tenho que voltar à terra porque tenho que me começar a preparar para os Jogos Olímpicos de Tóquio. Contudo, sem dúvida, foi um dos momentos que me vai ficar na memória para sempre e graças aos media tenho imagens e que vão guardar essas memórias para mais tarde para quando olhar para trás poder dizer “lembram-se quando eu apanhei o Covid-19 e depois consegui superar?” Para mim, foi dos momentos mais emotivos e espetaculares que já vivi… e o hino nacional?!
RA: Nós vimos as lágrimas…
PM: Foi um choro de contente e de gratidão depois de tudo que eu tinha passado.
RA: De todos as competições em que participou, de qual tem as melhores recordações? Porquê?
PM: São dois. O Campeonato da Europa ao Ar Livre, por ter subido pela primeira vez ao pódio, por ouvir “A Portuguesa”, pelos portugueses darem-me os parabéns e porque foi o dia em que a seleção também se tinha sagrada campeã da Europa. E este último, que tem um sabor muito, muito especial. Para mim são os dois momentos mais importantes.
RA: Prefere Pista Coberta ou de Ar Livre? Há alguma razão em particular?
PM: De Ar Livre, porque normalmente a pista é maior e se as bancadas estiverem cheias, como numa competição dos Jogos Olímpicos, faz completamente a diferença. Mas, agora com a Covid-19 não tivemos quase público nenhum, fomos só nós e as equipas… ainda deu para saborear um pouquinho.
RA: Como é o seu dia a dia em época de treinos?
PM: É acordar, tomar o pequeno-almoço, começar a treinar por volta das 10h e acabar por volta das 13h, depois ir ao centro fazer uma recuperação rápida e a seguir almoçar. Depois dormir a sesta e a seguir ir para o treino outra vez e por volta das 19h e 19h30m acaba o segundo turno, segue-se o jantar e se possível ainda faço um pouco de fisioterapia e depois vou dormir.
RA: Então e tempo de lazer… e de namorar?
PM: A sorte é que tenho um namorado que é atleta e tem o mesmo estilo de vida que eu e estamos praticamente nos mesmos sítios e estamos sempre juntos, embora estejamos a fazer o nosso trabalho individualmente. Os tempos livres ou tardes livres são para ficar em casa a ver umas séries e se possível visitar a família dele e fazemos um almoço para socializar num ambiente familiar… mas tenho tempo para estar com ele… (riso) e dormimos juntos também… (riso).
RA: Para finalizar, gostava de a convidar a deixar uma mensagem aos nossos telespectadores e leitores.
PM: Obviamente que quero agradecer a todos aqueles que me deram apoio e para todos os portugueses desejo, para este momento que estamos todos a viver, muita força, muita coragem e muita superação. A cima de tudo, protejam-se porque o mais importante é termos saúde, pois sem saúde não existe o resto.
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