Nem todo o artista é louco, nem toda a loucura é arte
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Nem todo o artista é louco, nem toda a loucura é arte

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Créditos: NM

 

 

A linha que separa a arte e a perturbação mental pode parecer ténue. E há muito que se estuda a sua possível ligação. Esquizofrenia, bipolaridade, depressão. Os grandes nomes saltam à vista. De Van Gogh a Florbela Espanca, de Mário de Sá Carneiro a Kurt Cobain. Mas será que a doença mental e a criatividade estão mesmo ligadas?

É bem capaz de ser um dos momentos mais marcantes da História da Arte e que deu origem ao famoso autorretrato. Corria o ano de 1888 quando Vincent Van Gogh cortou a própria orelha, naquilo que terá sido um surto psicótico. O museu erguido em Amesterdão, na Holanda, resume bem em salas recheadas de obras – algumas pintadas num hospital psiquiátrico – uma vida à margem de guiões, mergulhada na criatividade e na insanidade. Esquizofrenia, perturbação bipolar, as teorias sobre a doença mental de Van Gogh são várias. Já dizia Aristóteles que não há grandes génios sem uma mistura de loucura. E os exemplos multiplicam-se, em Portugal e lá fora, da pintura à música, da escrita à representação.

Florbela Espanca matou-se no dia em que fazia 36 anos, na agonia da neurose e da depressão. Kurt Cobain deixou uma geração de fãs de Nirvana órfã com o suicídio. Virginia Woolf, Mário de Sá Carneiro, Ernest Hemingway, Sylvia Plath, Robin Williams, Pedro Lima mais recentemente. É uma lista sem-fim. E são cada vez mais os artistas a assumir a luta contra perturbações mentais. Mariah Carey, Kanye West, Demi Lovato, Mel Gibson. Mas será que a doença mental e a criatividade estão mesmo ligadas?

“Há uma crença que não está provada de que as pessoas com veia artística mais desenvolvida têm uma incidência de perturbações mentais, nomeadamente depressivas, maior do que a população em geral.” Ana Matos Pires, psiquiatra, nem diz sim nem não. Mas consegue perceber a relação. “Não é uma mentira absoluta. Pode associar-se a quem tem mais capacidades criativas uma maior vulnerabilidade. Porque são pessoas mais sensíveis ao que as rodeia, que absorvem tudo. Não conheço nenhum criativo que não tenha uma sensibilidade muito própria. Ela é precisa para criar, para transformar a visão do Mundo em música, teatro, pintura. E talvez por aí o risco de adoecer seja maior.” Ainda assim, assegura: o gene da criatividade não é também o gene da doença mental. E não há uma doença típica dos artistas. “A esquizofrenia, por exemplo, é uma doença do cérebro, não é resultado do meio externo. Pode é manifestar-se quando há mais vulnerabilidade. Já na depressão, as contingências externas podem ser determinantes.”

Se há muitos estudos a provar a falta de ligação, também os há a corroborá-la. Uma investigação sobre a genética dos islandeses, publicada na revista “Nature Neuroscience”, sugere a ligação entre a criatividade – presente em pintores, escritores, atores, bailarinos – e variações genéticas que aumentam o risco de desenvolver doenças como a bipolaridade e a esquizofrenia. Outro estudo, publicado no “British Journal of Psychiatry”, que analisou os registos de saúde de todos os suecos, concluiu que os estudantes de artes no Ensino Superior são mais propensos a serem hospitalizados na idade adulta por esquizofrenia, perturbação bipolar ou depressão do que a fatia menos criativa da população.

Com tantas vozes dissonantes, José Eduardo Silva, investigador no Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, aguçou a curiosidade. É formado em Estudos Teatrais e doutorado em Psicologia. O seu estudo “Teatro e desenvolvimento psicológico” foi publicado na revista científica norte-americana “Creativity Research Journal”. Concluiu que as artes, como o teatro, têm grande potencial de promover o desenvolvimento a vários níveis do funcionamento psicológico. E no que toca à doença mental? “Os dados científicos são contraditórios, porque não há efetivamente uma relação causal.” Isso não quer dizer que pessoas “com alguma perturbação não encontrem na música ou na pintura uma forma de se poderem exprimir, de construírem um mundo alternativo face a uma sociedade que está construída de maneira muito rígida e onde quem não se consegue adaptar é atirado para a margem”. Até por isso há um grande historial de artistas com perturbação mental que produziram arte bruta, “alguns até fingiram doença para terem condições para criar livremente”.
Mas o investigador, que está agora a arrancar com um projeto que junta atores profissionais e pessoas com perturbações mentais no teatro, também olha para a relação inversa. Muitos artistas caem em depressão não por uma melancolia intrínseca, mas devido a uma vida de incertezas. “O facto de não terem trabalho durante muito tempo, de não conseguirem vender, a pobreza. Esses fatores são muito mais determinantes para desencadear sentimentos depressivos, ansiosos ou outros distúrbios.”

Manicómio: um lugar para criar

O Manicómio abriu as portas há dois anos, em Lisboa. É um espaço de trabalho, um lugar para portadores de doença mental poderem criar. Sem horários fixos. Tem 15 artistas. A ideia é combater a marginalização, tornarem-se financeiramente autónomos. Sandro Resende, cofundador do espaço, trabalha há mais de 20 anos com doentes mentais no Júlio de Matos. “Funciona como qualquer espaço cultural. Os artistas recebem uma percentagem das peças vendidas. Nós só fazemos a ponte com museus, galerias, empresas.”

Abrem caminho, mas as vendas só fazem sentido “se as peças acrescentarem valor estético”. Não é um projeto feito de pena ou caridade. “Não é pela patologia que trabalham aqui, são selecionados pelo seu portefólio, pela qualidade. Acima de tudo, é para trabalharem na profissão que escolheram que, neste caso, é artes.” Ali, já se criaram ténis que estão a ser vendidos nos Estados Unidos, objetos de cerâmica, rótulos, joalharia, para grandes marcas. Contudo, a história de que “todo o artista é louco e todo o louco é artista” não faz sentido para Sandro Resende. “Talvez 4 a 5% dos doentes com quem trabalho tenham talento e vontade.”

Para alguém formado em Belas-Artes e que já trabalhou com grandes artistas, qual é, então, a motivação para trabalhar com profissionais com psicopatologias? “Porque consigo encontrar uma pureza, autenticidade, ingenuidade que já não consigo ver na arte contemporânea dita normal. Estes artistas têm a capacidade de criar sem pensar se vai vender, se vai para as galerias, para o museu. E isso, sim, vem a reboque da doença, de nunca terem tido oportunidade de trabalhar no meio antes.”

A escrita e a perturbação bipolar

Entre as investigações na psicologia da arte, escasseiam conclusões, falta unanimidade. Um estudo de 2019 revelou que os níveis de psicopatologia não são significativamente superiores nos artistas comparando com o resto da população. “É essa a imagem geral, a de que não há uma ligação particularmente significativa”, diz António Duarte, professor na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, que admite, porém, essa associação em grupos e perturbações particulares. “Há estudos, como o de Kay Redfield Jamison, em 1993, que concluem que o transtorno bipolar de humor é dez vezes mais prevalente nos escritores de ficção e 40 vezes mais nos poetas.”

Três anos depois, uma outra pesquisa demonstrou que a incidência de depressão e psicose é mais elevada nos escritores do que no resto da população. “Os escritores parecem ter tendência para a ruminação obsessiva, pensar em acontecimentos passados negativos, isso é material de escrita. E escrever envolve muita revisão, voltar atrás, tentar escrever melhor.” Os manuscritos de Camilo Castelo Branco, o escritor que sofreria de perturbação bipolar e viria a suicidar-se em 1890, revelam precisamente isso: uma revisão exaustiva, o reescrever sistemático. Numa vida de crónicas, romances, poesia, o amor à escrita foi mesmo de perdição.

Para António Duarte, há, de facto, na criatividade um nível semelhante ao da loucura. As artes partilham qualquer coisa com a perturbação psicológica. “Há pensamento divergente, desestruturado, originalidade, mas o trabalho do artista é organizar esses rasgos de criatividade. O processo criativo exige muita disciplina e uma consciência muito clara, que não é compatível com um padrão desorganizado.” Da música à dança, é obrigatório muito treino.

É o mesmo em que acredita Marta Tagarro, que estuda a criatividade. A psicóloga defende que ela se liga mais à saúde do que à doença mental. Um dos resultados da sua tese de doutoramento é que a criatividade está ligada à autoestima. “Quanto mais a pessoa gostar de si própria, maior a possibilidade de ser criativa.” Mas como é que há grandes criativos que têm patologias? “Podem encontrar na criatividade uma resposta de simbolizar o mundo interno, de elaborar coisas desorganizadas, danificadas.” Mas estes artistas, alerta, não criam em picos severos da doença, antes em fases com mais energia.

A ideia romântica a cair por terra

Quando se começou a estudar a ligação entre a criatividade e a loucura, no início do século XX, esbarrou-se em dificuldades. É Miguel Bragança, diretor do serviço de Psiquiatria do Hospital de São João (Porto), quem explica num piscar de olhos porque não há consenso. “Há vários problemas para estudar isto a sério. Primeiro, faltam modelos de investigação. Por isso é que há estudos cheios de disparates. Outro problema é o conceito de criatividade. O que é que distingue o que é criativo e o que não é?”, questiona. Por fim, há dificuldade em encontrar amostras. “Onde é que vamos buscar artistas? Mesmo que haja uma amostra, quando entrevistamos um criador, ele vai querer impressionar, é um indivíduo que quer ser diferente, que vai inflacionar o que pensa, enfatizar o que sente, que veste farda de artista. E isto mina a investigação.”

Estima-se que haja 450 milhões de pessoas com patologia mental no Mundo. E o também professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto é curto e grosso: “Não há 450 milhões de artistas. Subestimamos a probabilidade de um génio ser saudável e sobrestimamos a de um doente mental ser criativo. Porque a ideia de uns tipos malucos é um mito romântico.” Solta exemplos. “Da Vinci era equilibrado. Botticelli também. Mas a necessidade de acreditar na conexão entre criatividade e loucura é tão forte que já se aceita tacitamente isto. Acreditamos que quanto mais tolos forem os artistas, mais pintura ou arquitetura diferente teremos.”

O psicólogo António Duarte soma-lhe outra explicação. Os exemplos de génios criativos com doenças têm tanta notoriedade que leva a que se tenha desenvolvido esta representação social. “Se há casos famosos, temos tendência à generalização.”

É um erro, diz Miguel Bragança. Uma falha que se junta à classificação do manual de diagnóstico DSM-5, da Associação Americana de Psiquiatria, das doenças mentais. “O diagnóstico de doença bipolar está sobreavaliado nos novos critérios”, aponta. Só que a ideia da loucura é sedutora. “Muitos artistas até usam essa estratégia, a excentricidade, como bengala que lhes retira obrigações sociais. Mas 99% dos doentes mentais não são os tais génios criativos.”

Inês Schrek

NM

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