Cérebro e obesidade: Isto está mesmo tudo ligado
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Cérebro e obesidade: Isto está mesmo tudo ligado

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Por que razão falamos em “comer emocional”, a importância da imagem corporal e da genética, as consequências do excesso de peso na capacidade cognitiva e no processo das emoções. E uma nota de esperança face a um problema galopante.

Ocenário é familiar a todos. Se o não for por experiência direta, há de sê-lo pelo conhecimento de alguém próximo que se comporta assim. Concretizemos: o dia a dia é uma correria, o trabalho um stress constante, as preocupações com a casa, com o dinheiro, com os filhos e, no meio disto, ainda há aqueles episódios disruptivos que nos transtornam os dias, uma discussão com alguém de quem gostamos, uma “descasca” do chefe, um susto de saúde. Quando percebemos, já estamos nós a devorar bolachas, bolo, gelado, chocolate e o que mais houver para afogar as mágoas, como se naquela ingestão nociva mas prazerosa de calorias expiássemos todos os males dos dias. Ou então o seu caso será mais o oposto, quando se aflige, o estômago embrulha-se, parece que não há comida que lá caiba, por vezes dá até a sensação que a garganta se fecha e que não mais será capaz de voltar a comer. Nada disto é imaginação sua, muito menos um mero comportamento individual e irreplicável. É a própria ciência que o justifica.

José Silva Nunes, endocrinologista do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, professor do mestrado integrado de Medicina da NOVA Medical School e ainda presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, dá-nos conta disso mesmo. “As nossas emoções condicionam a forma como percecionamos os alimentos e o ato de os comer. O stress e outras emoções negativas, como depressão e a ansiedade, podem levar à diminuição e ao aumento da ingestão de alimentos. O termo ‘comer emocional’ tem sido amplamente utilizado para se referir à última resposta: uma tendência a comer em resposta a emoções negativas, sendo os alimentos escolhidos ricos em energia e de elevada palatabilidade [sabem bem].” Sendo que há vários mecanismos na origem desta “alimentação emocional”. “Por exemplo, usar a alimentação para lidar com emoções negativas ou confundir estados internos de fome e saciedade com alterações fisiológicas relacionadas com as emoções.”

Mariana Monteiro, médica endocrinologista e professora catedrática do ICBAS, no Porto, reforça este ponto. “Nós temos dois sistemas que funcionam em paralelo e se influenciam. Por um lado, os mecanismos homeostáticos, que são um fator de equilíbrio energético. Por outro, os mecanismos hedónicos, relacionados com o prazer ou a falta dele, que impactam sobre os primeiros e os conseguem influenciar, seja no sentido de não querermos comer, que é a reação mais primitiva, ou de querermos comer mais, que já é uma reação mais elaborada. A influência dos mecanismos hedónicos exponencia-se em situações de desequilíbrio emocional.” Ou outra prova de que o cérebro influencia tudo, o excesso de peso incluído, condiciona até a forma como vemos o nosso corpo. José Silva Nunes esclarece: “A imagem corporal tem sido descrita como uma construção multidimensional do cérebro, resultante de perceções, pensamentos, sentimentos e atitudes relacionadas com os aspetos físicos do corpo.”

Foquemo-nos então na obesidade, mais concretamente nos mecanismos do cérebro que contribuem para esta doença, já considerada um dos maiores problemas de saúde pública do Mundo (ainda no ano passado, a Organização Mundial de Saúde estimava que perto de 60% dos europeus vivem com excesso de peso ou obesidade). “O cérebro desempenha um papel importante no controlo da ingestão e gasto de energia. O hipotálamo recebe informação sobre os alimentos ingeridos e a quantidade total de gordura corporal, processando essa informação e originando um conjunto de ações que promovem a perda ou o ganho de peso. Contudo, o prazer associado à ingestão de determinados alimentos pode suplantar aquele mecanismo de regulação do peso, promovendo o ganho ponderal [aumento de peso].”

Mariana Monteiro detalha o processo. E explica porque é tão difícil inverter o ciclo. “O nosso cérebro funciona como uma espécie de fiel da balança que nos vai dizendo qual o nível das reservas energéticas considerado o limiar do estável. Como somos descendentes de muitas gerações que viveram situações de carência, pestes, fomes, de maneira inata estamos programados para acumular energia. Só que à medida que vamos aumentando as reservas de energia, mais o fiel da balança vai subindo. Se o limite for excedido, esse valor passa a ser considerado o novo normal. Por isso as intervenções que não sejam sustentadas ao longo do tempo vão desencadear mecanismos de defesa no sentido de recuperar aquele défice de energia. Esses mecanismos estão centralizados na zona mais ancestral e primitiva do nosso cérebro, que é o hipotálamo.” Mas isto é válido unicamente no caso da obesidade ou também no excesso de peso? “Em ambos os casos. A diferença está na dificuldade em fazer a inversão do ponderostato [sensor da quantidade de energia acumulada] e em manter a estabilidade. Porque quanto mais nos desviamos do intervalo normal, mais difícil é voltar a ele e ficar lá.”

 

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Herança genética e capacidade cognitiva

E se é certo que as emoções têm uma palavra a dizer neste processo, não há como negar o papel fundamental da herança genética. Mariana Monteiro lembra mesmo que estudos feitos em gémeos separados à nascença e criados em contextos completamente diferentes mostraram que o fator genético “tem um impacto de cerca de 70%” na obesidade. José Silva Nunes também enfatiza este ponto. “Muitos dos genes associados à obesidade estão expressos no sistema nervoso central, intervindo nas vias de controlo do metabolismo energético. O risco genético para a obesidade reflete o resultado de múltiplas zonas de material genético, cada um contribuindo com uma pequena porção do risco total.”

Ressalva, no entanto, que “não é inevitável que uma pessoa que herde essa predisposição venha a desenvolver obesidade”. “Essa predisposição só se manifestará em ambientes propícios ao aumento de peso”, garante. O que, numa sociedade onde sobejam os alimentos hipercalóricos e escasseia a atividade física (pelo menos para uma parte considerável da população), tende a ser um problema sério.

Tanto mais quanto a obesidade está associada ao aumento de várias doenças, tanto físicas como psíquicas. Mariana Monteiro, do ICBAS, recorda, a propósito, os “três émes”. “Tem consequências metabólicas, como a diabetes e as doenças cardiovasculares, mecânicas [deterioração das articulações, por exemplo] e mentais.” A propósito das últimas, vale a pena realçar que, se as emoções têm papel importante na obesidade, a interação no sentido inverso também é verdadeira, ou seja, a doença tende a impactar negativamente no processamento das emoções e mesmo na capacidade cognitiva. O presidente da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade concretiza. “A alteração da imagem corporal dos doentes leva, frequentemente, a quadros depressivos e de ansiedade. E como a ingestão de alimentos tem uma ação ansiolítica, pode criar-se um ciclo vicioso que perpetua esta situação”, avisa o especialista, que alerta para o facto de existir “uma elevada prevalência de perturbações de personalidade em indivíduos com obesidade”. “A alteração da imagem corporal e a consequente deterioração dos sentimentos de autoestima facilitam o desenvolvimento dessa psicopatologia.”

Mariana Monteiro acrescenta que o impacto emocional é influenciado pelo ambiente social que rodeia o doente. “Os estudos mostram que a prevalência da depressão em pessoas obesas é tanto maior quanto mais elevado for o extrato social do doente.” Lembra ainda que há uma relação de causa efeito a nível fisiológico. “Quanto maior a gordura abdominal, menor o volume do cérebro. Daí a obesidade estar frequentemente associada a uma deterioração cognitiva.” Note-se também que a obesidade constitui um importante fator de risco para doenças cárdio e cerebrovasculares. Tem a palavra José Silva Nunes. “As alterações decorrentes da anormal função do tecido adiposo, com aumento na secreção de produtos que promovem um ‘status’ inflamatório, facilitam o aparecimento de insuficiência cardíaca e aumento do risco de ocorrer um enfarte agudo do miocárdio ou um acidente vascular cerebral.”

Nem tudo são más notícias, ainda assim. Mariana destaca que, apesar de a obesidade ser um problema cada vez mais premente a nível global, há ferramentas “cada vez mais eficazes” para a combater. “A intervenção clássica passa sempre pela mudança do estilo de vida e dos hábitos alimentares. Mas quando falamos numa situação de obesidade sabemos que o tratamento vai ter de incluir fármacos.” Destaque-se, a propósito, o tão badalado “Ozempic”, o semaglutido que é prescrito para doentes com diabetes e que tem sido tremendamente eficaz ao nível da perda de peso. “Se falamos de um caso de obesidade moderada ou severa, em que já há comorbilidades e não há contraindicações cirúrgicas, o mais indicado é fazer cirurgia bariátrica, para prevenir o fenómeno ‘ioiô’.” Crucial, sublinha a docente, é mesmo “não baixar a guarda”. “Intervir enquanto ainda não é grave, porque os recursos também são limitados.”

Ana Tulha/NM

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