Bacalhau: o fiel amigo e o Natal
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Bacalhau: o fiel amigo e o Natal

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As festividades do Natal aproximam-se a passos largos. A friagem obriga a acender as lareiras nas noites frias de dezembro. A comida fumega nas travessas; pratos e tijelas bem guarnecidos para os comensais famintos satisfazerem a sua gula, um dos pecados capitais segundo a tradição judaico-cristã.

O consumo de peixe em Portugal tal como nos países europeus, está associado a motivações de ordem religiosa. O cristianismo impunha um conjunto de preceitos, jejuns e abstinências da carne e das gorduras animais numa boa parte do ano, sobretudo aos grupos mais privilegiados. Às gentes mais humildes essa prática religiosa obrigava ao consumo de peixe (sardinha e bacalhau), para escapar a uma alimentação exclusivamente à base de vegetais.

Ao longo dos tempos, o bacalhau transformou-se numa fonte de proteína para as populações mais pobres, sendo um natural substituto da carne e complementar da dieta paupérrima dos pescadores, proletários e agricultores.

Segundo o historiador Fernand Braudel, esta relação indissociável entre os portugueses e o fiel amigo, o bacalhau “é não só de natureza económica, ligada ao desenvolvimento da economia mundial capitalista, em que a pesca e o comércio do bacalhau, um peixe abundantíssimo no Atlântico Norte, desempenharam um papel relevante, como o mostrou ¬Fernand Braudel (1979: 184-187), mas também religiosa, social, política e cultural. “

No entanto, se há um povo que tenha uma história com o bacalhau e a sua captura, esse povo são os portugueses. A sua ligação umbilical ao Atlântico Norte e em particular à Terra Nova remonta ao Séc. XVI nos primórdios dos descobrimentos portugueses.

 

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Segundo Joel Serão, no seu Dicionário de História de Portugal, “é admissível que os primeiros navegadores europeus a atingirem a Terra Nova, na época dos descobrimentos marítimos, fossem pescadores ingleses, bascos ou bretões (…) O carácter esporádico de tais viagens basta para explicar que sobre elas se não possua documentação confirmativa. O descobrimento historicamente estabelecido da Terra Nova deve-se a Gaspar Corte Real (filho de João Vaz), que atingiu a grande ilha do noroeste americano em duas viagens de 1500-01 (…) Outros monumentos cartográficos posteriores confirmam que o descobrimento era geralmente atribuído aos Cortes Reais (…) São vários os cartógrafos que lhe dão o nome dos descobridores “Terra Corte-Regalis”, ou expressamente “tierra de los bacallaos la qual descobrieron los Corte Realis”.

Podemos afirmar, que o hábito de consumo de bacalhau salgado e seco em Portugal é muito antigo, não fôssemos nós os primeiros consumidores mundiais deste pescado.

Mas saberão os portugueses que sacrifícios e tormentas eram necessárias ultrapassar nos mares da Terra Nova para pescar o fiel amigo, o Sr. Bacalhau?

Uma autêntica epopeia para as tripulações dos Lugres, vulgo bacalhoeiros de três mastros, como o Júlia IV. Na primeira metade do séc. XX, a frota portuguesa era a única que ainda comparecia nos mares da Terra Nova com veleiros quase medievais, entre as frotas mecanizadas de espanhóis, franceses e russos.

No livro “Nos mares da Terra Nova – A saga dos bacalhoeiros” de Anselmo Vieira, podemos ler uma descrição pura e dura da vida dos pescadores na faina do bacalhau.

“Apesar de correr adiantado o mês de Maio, o frio e os nevoeiros gélidos continuavam pesados sobre um mar de calmaria. Visibilidade zero, por vezes durante duas ou três semanas; um muito cansaço de não ver para além da proa imóvel no seu fundeadouro. Os dories lançados ao mar de madrugada não tinham margem de manobra para pescar longe do Júlia IV sem risco de algum se perder do navio-mãe, nem este podia levantar ferro para o procurar sem desorientar a navegação do pescador. O único ponto de referência de que dispunham eram os disparos de pólvora seca de uma Columbrina, um pequeno canhão do tempo das caravelas. Nos dories, os pescadores dispunham de um grande búzio helicoidal e durante o dia todo, ao soprá-lo, lançam um som penetrante e lamentoso que furava o muro pegajoso daqueles nevoeiros como a dizer:

“- Eu estou aqui, estou bem!”.

E como surgiu a tradição de comer bacalhau na noite de Natal?

Não será alheio o facto de no litoral português existirem vários portos ligados à faina do bacalhau nos bancos da Terra Nova, sobretudo no Porto, Viana, Aveiro e Lisboa. Assim sendo, tal não será estranho o bacalhau marcar presença nas cozinhas dessas regiões, sobretudo a norte, não só na alimentação do quotidiano, como nas mais diversas festividades.

Ferraz Júnior no seu livro “Recordações do Minho – Festas Populares: O Natal, as Janeiras, os Reis”, afirma o seguinte:

“Desde meados do século XIX – mas a prática seria anterior, não saberemos quanto –, o bacalhau, acompanhado com batatas e legumes (couves), aparece descrito como um elemento central na ceia de Natal no Norte, a consoada, a “festa da família”.

E ainda segundo Viterbo Sousa, “Na origem desse consumo encontram-se mais uma vez motivações de natureza religiosa. A véspera de Natal era um tempo de abstinência com a interdição da carne, por isso, o consumo do peixe impunha-se, e este acabou por ser, fundamentalmente, o bacalhau. Em começos do século descrevia-se a diferença na comida natalícia entre o Porto e Lisboa. Enquanto na primeira das cidades, a refeição mais importante tinha lugar na véspera, antes da missa do galo, o que tornava de rigor o consumo de peixe, que era o bacalhau, na segunda, a principal celebração consistia no almoço do dia de Natal, em que já se podia comer carne: o peru era, então, o principal dos alimentos”.

Na opinião de José Quitério, no seu livro intitulado “O livro de bem comer”, o escritor assevera que “no Minho, em Trás-os-Montes e Alto Douro e na Beira Alta, essa refeição é similar e de peixe, por ser antes da meia-noite. Nas províncias do Centro e em Lisboa misturam-se tradições. Onde a refeição tem lugar após a meia-noite, ou a refeição principal é no dia seguinte, a carne é permitida, como na Beira Baixa, Alentejo, Algarve, Madeira e Açores”.

Mas foi a consoada nortenha, com bacalhau, que acabou por formar a representação dominante da refeição festiva mais importante do Natal em Portugal.

A minha mesa de consoada está engalanada, os comensais a postos para degustar as mais variadas iguarias natalícias. Neste repasto natalício cruzam-se as tradições gastronómicas do Alto Douro e da Beira Baixa. O bacalhau cozido com as batatas, as tronchudas e um ovo cozido devidamente regado por um fio de azeite. A raia cozida acompanhada com batatas e couves cozidas. O arroz de polvo malandrinho a deslizar no prato. Os néctares vínicos durienses para alegrar a noite, terminando com os diversos doces – as filhós, os sonhos, as rabanadas, o arroz doce e a aletria. A fechar com chave de ouro, um cálice de vinho generoso, antes da ida à missa do Galo.

Carlos Cruchinho

 

 

Bibliografia consultada:

  • O “fiel amigo”: o bacalhau e a identidade portuguesa (openedition.org)
  • BRAUDEL, Fernand, 1979, Civilisation matérielle, économie et capitalisme XVe-XVIIIe siècle, tomo I: Les structures du quotidien. Paris, Armand Colin.
  • FERRAZ JÚNIOR, 1866, “Recordações do Minho – Festas Populares: O Natal, as Janeiras, os Reis”, Archivo Pittoresco, IX: 315-316.
  • SERRÃO, Joel, 1971, Dicionário de História de Portugal, Porto, Livraria Figueirinhas.
  • VIEIRA, Anselmo, 2010, Nos mares da Terra Nova – A saga dos bacalhoeiros, Lisboa, Editorial Presença.
  • QUITÉRIO, José, 1987, O Livro de Bem Comer. Lisboa, Assírio & Alvim.
  • VITERBO, Francisco Marques de Sousa, 1912, Cem Artigos de Jornal. Lisboa, Typografia Universal.

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