José Saramago (1922-2022)
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José Saramago (1922-2022)

A minha viagem de andarilho pela sua escrita

jose saramago - revista amar (1)

 

Ao começar a escrever este modesto apontamento sobre José Saramago, apeteceu-me provocar o leitor com uma frase que bem poderia ter sido dita pelo nosso nobel da literatura: “No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”. E foram tantas as frases provocatórias de caráter religioso proferidas pelo escritor, contudo, como diria o poeta José Régio no seu Cântico Negro, “Sei que não vou por aí”.

Após um merecido descanso, recheado de boas leituras, nada melhor que voltar à escrita, homenageando José Saramago postumamente, no ano do centenário do seu nascimento, mas longe das polémicas e controvérsias à volta da sua obra.

Nos últimos anos de vida, o seu visível definhar físico, jamais toldou a sua perceção dos problemas do mundo globalizado. Remetido ao seu exílio voluntário, na “jangada de pedra” de Lanzarote, aguçava a sua lucidez evidenciando a sua visão do mundo que alertava para a cegueira da humanidade, em relação aos deserdados da vida, fazendo-o levantado do chão, mesmo não sendo um homem em duplicado. Este escritor, mais conhecido pelo seu Memorial do Convento, tem alma de viajante; percorre as aldeias e vilas de Portugal descrevendo-as pormenorizadamente. No livro que acabo de referir, encomenda do Círculo de Leitores em 1978, o escritor José Saramago viandou por terras da Beira Alta descrevendo a sua viagem e tecendo elogios, desabafos e dando sugestões. Quando passou por Viseu, vinha com a intenção clara de dormir e comer bem em 1ª classe e não em turística. Vejamos o que aconteceu ao viajante por terras de Grão Vasco, a que ele prefere nomear Vasco Fernandes. A certa altura, Saramago diz:

“De memória antiga, levava pronto o apetite para um arroz de carqueja, tanto mais que ia chegar a boas horas de comer. Almoçou já não recorda o quê, e prefere não dizer onde. São acidentes a que está sujeito quem viaja, e por isso não se há de ficar a querer mal às terras onde acontecem. Mas, foi azar supremo e acumulado ter ido depois ao Museu Grão-Vasco e vê-lo em intermitências de luz e sombra, porque ora se aguentava a corrente elétrica ora desfalecia, e mais desfalecia do que se aguentava. Havia obras, arranjos, reparações no primeiro andar e ainda assim valeu a boa vontade da guarda acompanhante que ia à frente acender e atrás apagar a luz, para que não fosse sobrecarregada a instalação elétrica a ponto de rebentarem fusíveis, como apesar de todos os cuidados, algumas vezes rebentaram. Depois de mal almoçar, mal ver, tem desculpa o viajante de sentir-se tão enfadado.”

 

jose saramago - revista amar (2)

 

Coincidências das coincidências, hoje em dia no Museu Nacional Grão Vasco decorrem obras de restauro no edifício sito no Paço dos Três Escalões. Segundo o autor, “é de bom critério saber o nome das belas coisas, como este edifício, tanto por fora, em sua maciça construção, como por dentro, na decoração eclesial das salas inferiores”, mas o seu destaque vai inteiramente para os Retábulo da Sé, “a sua rendida estima …” pelas “… catorze admiráveis tábuas compassos da vida de Cristo, representados com uma sinceridade pictórica e uma capacidade expressiva raras na pintura do tempo. Vasco Fernandes é aqui, e não perde nenhuma oportunidade de o ser, um paisagista. É patente que sabia olhar as distâncias e integrá-las na composição geral do quadro, mas não custa ao observador isolar a paisagem entremostrada e reconhecer como por si mesma picturalmente se justifica.” Vale a pena uma visita a Museu Nacional Grão Vasco.

Com uma magistral argúcia de viajante experimentado, o autor perscruta as ruas e vielas da cidade medieval, aconselha o forasteiro mais incauto, “para chegar à Sé, basta atravessar o largo, mas o viajante precisa descansar um pouco os olhos, dá-los às coisas comuns, as casas, as poucas pessoas que passam, as ruas com os seus nomes saborosos, a da Árvore, a do Chão do Mestre, a Escura e a Direita, a Formosa, a do Gonçalinho, a da Paz, que, por isso mesmo, é a que leva a bandeira. Esta é a parte velha de Viseu, que o viajante percorre devagar, com a estranha impressão de não estar neste século”. Como num labirinto, desfruto da descrição do autor, relembro as boas sensações e emoções ao percorrer nas quatro estações, as ruas e vielas do centro histórico de Viseu.

 

jose saramago - revista amar (3)

 

As viagens pela escrita de Saramago obrigam-me à primeira analepse na narrativa, voltando às viagens por Portugal pela pena do filho da Azinhaga, a rota vira a norte com uma estadia à beira do rio Douro. As minhas memórias no Douro Sul, no início da minha carreira docente, a minha primeira colocação em Resende revela-se fantástica na descoberta da rota do românico. A esse propósito Saramago, como um andarilho sem eira nem beira, vai nomeando os topónimos inscritos nas placas à entrada das povoações. No caminho encontrou Picão, Moura Morta, a Gralheira, Panchorra, Bustelo, Alhões e Tendais, terras que não visitará. O rol continua com Mezio, Bigorne, Magueija, Penude e no remate entre as Meadas e a Serra de Montemuro estará São Martinho de Mouros. A descrição contínua por terras alcandoradas na margem esquerda, “o viajante procura a igreja matriz da terra. Fica a um lado, virada para o vale, e, assim implantada, dando a face aos ventos, percebe-se que mais a tenham feito fortaleza do que templo. Com uma porta sólida, trancas robustas, mouros que viessem teriam sido vencidos como os venceu aqui Fernando Magno, rei de Leão, no ano de 1057, ainda faltavam quase cem anos para Portugal nascer.”

A igreja alberga alguns tesouros, segundo o viajante, “duas tábuas com passos da vida de S. Martinho, um Cristo enorme, e pouco mais, se não contarmos as imagens sacras populares que, sobre uma alta parede interior se vão cobrindo de pó e teias de aranha. O viajante indigna-se diante de tal abandono. Se em São Martinho de Mouros não sabem estimar tão belas peças da imaginária rústica, entreguem-nas a um museu, que as saberá agradecer”.

O ilustre viajante acabará por completar o seu elogio ao património de arte sacra enclausurado entre as paredes da igreja de S. Martinho de Mouros, aconselhando a sua cicerone cautelas no franquear de portas à cobiça. As suas palavras causaram uma certa admiração na mulher que o guiara nesta visita, tendo descrito apreensão desta da seguinte maneira “Tal susto meteu à perplexa mulher que hoje em redor da igreja deve haver um campo fortificado onde só se entra com prévio exame da consciência e donde apenas se sai depois de mostrar o que vai nos alforges.”

A sua proximidade com o rio Tejo na sua terra natal e mais tarde em Lisboa, moldará a sua ligação estreita às gentes ribeirinhas. O escritor Alves Redol referia-se aos ribeirinhos, no seu livro Avieiros, da seguinte forma:
“Quando o Tejo passa, algo acontece sempre, porque um rio tem as suas glórias e os seus dramas. Como os homens. Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Mas os homens amam e apaixonam-se. Por belas coisas, às vezes; por coisas mesquinhas, outras tantas. A paixão é o tudo e o nada dos homens”.

 

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Na obra poética desconhecida pela grande maioria dos seus leitores, José Saramago descreveu a sua relação com os rios, verso após verso, estrofe após estrofe, onde desvendou a sua forte ligação ao elemento água, fonte de vida e inspiração poética.

É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas,
e de repente não sei se as águas nascem de mim,
ou para mim fluem.
Continuo a puxar,
não já memória apenas,
mas o próprio corpo do rio.
Ao fundo do rio e de mim,
desce como um lento e firme pulsar do coração.

in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)

Carlos Cruchinho

 

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