Anjo da Guarda
Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades, pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado. Emma Lazarus, poema gravado no pedestal da Estátua da Liberdade
O ser humano é, por natureza, um ser espiritual, sem que o adjetivo “espiritual” esteja envolto em qualquer conotação religiosa, mas apenas na tomada de consciência de nós todos, enquanto sopro, espírito ou alma. Ter consciência da alma mais não é do que um estado de conhecimento profundo da nossa essência e do mundo que nos rodeia, apesar de todas as suas diferenças. Como seres espirituais que somos, ao observarmos o universo, há em nós a crença numa força superior para a qual apelamos sempre que sentimos necessidade de proteção para as decisões que diariamente tomamos. Essa proteção ganha corpo físico em todas as culturas, independentemente da religião que professem, sejam elas pagãs, monoteístas ou animistas.
Quem vive em terras do Canadá sabe que a cultura dos povos nativos, que sempre as habitaram, invoca os espíritos protetores erguendo-lhes totens. A palavra “totem”, derivada de “odoodem”, significa marca de família, na linguagem indígena Ojibwe dos índios da América do Norte. Tomando a forma de uma coluna esguia, que tanto pode representar animais, como plantas ou outro objeto qualquer, são considerados objetos de veneração e de culto entre o seu povo, por estes os considerarem seus ancestrais e protetores.
No caso do Cristianismo, na sua vertente católica apostólica romana, temos, como instância protetora, a figura do Anjo da Guarda a quem, desde a infância, rezamos a oração: “Anjo da Guarda/ minha companhia/ guardai a minha alma/ de noite e de dia.”
Podemos dizer que, desde o berço, aceitamos a presença deste anjo como forma de nos sentirmos acompanhados, sabendo que ele nos protege com uma luminosidade especial, ao dar-nos a tranquilidade de nunca nos sentirmos sós. Há mesmo quem chegue a dialogar com ele, como se fosse uma voz da consciência que ajuda a tomar decisões.
Vem todo este introito a propósito da escultura sonhada e encomendada pelo comendador Manuel DaCosta, que foi inaugurada na Praça Luís de Camões, no passado dia 13, para celebrar os 70 anos da chegada oficial dos Portugueses ao Canadá. Esculpida em mármore de Estremoz, é composta por sete peças, cada uma delas representativa de uma década da emigração. Trata-se de uma escultura imponente que, ao ser descerrada, nos transporta para o universo dos totens.
É uma figura muito alta, esguia, de anjo protetor, com as asas fechadas sobre o peito, como se, dentro delas, vivesse aconchegada toda uma comunidade que foi acolhida durante o seu percurso.
Não sei se o multifacetado escultor Paulo Neves, ao dar-lhe este formato final, se inspirou na carga simbólica dos totens. Se não foi essa a intenção do artista, foi a leitura imediata que fiz quando para ela ergui o meu olhar, dando ao Anjo este cariz multicultural, que resulta da fusão das duas culturas – a do país de acolhimento (decalcada nas crenças dos povos aborígenes) e a da religiosidade trazida na bagagem de todos os que sonharam percorrer novas estradas, fazendo delas suas.
Há setenta anos, foi o homem do leme quem, habilmente e por águas de esperança, manobrou o Satúrnia para trazer a primeira carga humana a bom porto. Setenta anos depois, foi o homem da grua quem manobrou o Anjo da Guarda para, com a mesma destreza, o colocar a proteger a comunidade portuguesa e lusodescendente que, com toda a pujança, se multiplicou pelos variados portos de abrigo de que o Canadá é feito.
Do alto do seu pedestal, e à semelhança da Estátua da Liberdade, ele será o farol protetor de todos os “arremessados pelas tempestades” a quem se abriram os portões dourados do destino.
Aida Batista
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