Siza Vieira: A arquitetura em forma de homem
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Siza Vieira: A arquitetura em forma de homem

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Álvaro Siza Vieira, arquiteto português de renome, abriu as portas do seu ateliê e falou-nos, abertamente, da sua arte ligada ao mundo arquitetónico, antes de ter sido conhecido que foi escolhido pela Santa Sé para criar a instalação que irá representá-la na Bienal de Arquitetura de Veneza, que decorre entre 20 de maio e 26 de novembro.

Manuel DaCosta sentou-se à mesa com o arquiteto Siza Vieira, considerado um dos grandes nomes vivos da arquitetura e urbanismo moderno no mundo e um dos mais importantes profissionais na história da arquitetura em Portugal. A simplicidade aliada à sofisticação relativamente à conceção e realização dos seus projetos arquitetónicos renderam a Siza Vieira amplo reconhecimento mundial e grande influência sobre o urbanismo atualmente.

Acha, que de certa forma, não inventou certas coisas para que a realidade fosse conseguida, visto ter escrito “Architects don’t invent anything, they just transform reality”?
Inventei ou chama-se inventar. Quando eu disse essa frase é porque acho que essa invenção não vem assim do céu. No fundo vem da informação que nós vamos tendo do ver, que é fundamental para o arquiteto e, portanto, vamos acumulando coisas. Também trouxe muita coisa, na cabeça, do Canadá, claro. Tanta coisa, na formação de um arquiteto, que a certo ponto não podemos usar conscientemente. Se não, não sabemos onde ir buscar as ideias, são tantas. Mas elas ficam no subconsciente e este é um bom amigo porque quando nós precisamos aparece. E o que eu quero dizer com isto é que invenção sim, mas essa invenção em função de tudo o que conhecemos, ampliando esse conhecimento, e que nos apoia mesmo inconscientemente.
Durante estes anos de carreira, desde que começou, a evolução da sua arquitetura e do seu desenho mudou claramente com o passar dos anos. Onde é que está hoje e como é que vê hoje o desenho e a arquitetura?
Antes demais, a arquitetura, pelo menos para nós, europeus, atravessa um momento muito difícil. Houve alterações e uma indefinição das normas do exercício da nossa profissão que estão a ser criadas na europa, pelo menos problemas terríveis. Para citar alguns, já não há normas quanto à remuneração do arquiteto, decisão da comunidade europeia, cujo todos os países aceitaram, menos a Alemanha, onde lhe foi imposto, devido a uma denúncia, suponho eu, o cumprimento dessa mesma decisão (e já está a cumprir). E isso cria condições, antes demais, de concorrência desleal e eticamente inaceitável. Quer dizer, há quem não trabalhe por nada, e depois receba de construtores, de fornecedores de materiais… o que é no fundo a abertura para a corrupção. E, portanto, na Europa, de acordo com essas novas regras, a obra pública tem que ser por concurso, a não ser com um limite de pagamento irrisório. Mas nas normas dos concursos há um artigo que diz que um dos critérios para a seleção será o custo do projeto, por conseguinte vai dar ao mesmo. Isto está a ter umas consequências terríveis e o que acontece neste momento é que no meio de uma aparente euforia, porque há muitos eventos internacionais, workshops, publicações, livros, quem estiver fora do ofício penso que poderá até pensar que é um momento ótimo para a arquitetura, mas não é.

Porque é que acha que esta gente, que pede os nossos serviços de arquitetura, o nosso talento, a nossa vida de estudo, não acha que merecemos um certo valor pelo nosso talento?
No caso da Europa, aparece uma norma que satisfaz muitos políticos. Porque ela dirigisse sobretudo à obra pública, porque satisfaz e porque acham que pagam pouco e como têm dificuldade de verbas agarram-se logo a isso. De resto, atualmente é impossível um presidente de câmara escolher um arquiteto. Tem que ser mesmo por concurso ou com pagamento irrisório que não permita a ninguém fazer o trabalho. E, portanto, entra no tal regime de concurso que eu já descrevi. No entanto, nos privados, ainda se encontra um ou outro, mas normalmente é pequena obra, uma moradia, qualquer coisa assim. Quando a obra é mais importante, os privados quando veem o exemplo do estado, não querem ficar atrás, acham que são tolos se ficarem atrás, mas percebem na mesma. Esta é uma situação completada por coisas, no fundo que concorrem na mesma direção, como é por exemplo, já não há direitos de autor, mas há direitos de autor para os músicos, para os pintores, para os cineastas, para os escritores, no entanto para os arquitetos não há. Coisa que antes havia. Em relação à situação anterior, é um desastre, porque isto é recente e corresponde à entrada na comunidade europeia e a uns burocratas que não sabem o que é a arquitetura, que fazem normas nesse sentido.

 

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Agora falando especificamente de Toronto, onde estamos a construir torres e mais torres de vidro quadradas para acomodar muita gente lá dentro, às vezes sem condições, principalmente condomínios. Como sabe, o Canadá ainda é um país relativamente novo, grande e muito espalhado, e a arquitetura muda de cidade para cidade. Mas, realmente, estamos a fazer muitas “caixinhas de vidro” que para mim é um desastre para o que vai acontecer mais tarde. Neste sentido, porque é que acha que esta arquitetura de conveniência está a ser adotada em tantas partes do mundo?
As cidades, na sua limitação territorial, têm escassez de territórios, e creio que essa é uma das razões, pois há uma enorme atração para os grandes centros urbanos, onde há mais oportunidades de trabalho, mais qualidade de vida, etc, e em vez de se fazer um alargamento de território, ou uma associação de territórios, há casos em que a aglomeração é tal que só construindo em altura é que se consegue meter as pessoas que acorrem à cidade. Depois há torres de vidro belas e torres de vidro horríveis, como cheguei a ver quando ia ao Canadá, especialmente em Toronto.

Já que estamos no Canadá, fale-nos um pouquinho de Montreal, dos seus trabalhos na fundação que estabeleceu e que continuam em exibição e do que o levou a estabelecê-la lá?
A primeira razão foi que à medida que fui aumentando a idade e os arquivos, eu achei que tinha que encontrar uma solução e por outro lado muita gente me pressionou para dar um lugar aos meus arquivos dizendo-me que era interessante para estudantes, para a geração futura, e que eu tinha que cuidar disso. Simplesmente em Portugal nunca ninguém manifestou o menor interesse. Nunca tive uma proposta para depósito de arquivos. E um dia apareceu-me um italiano, um dos responsáveis pelos arquivos no Canadá, e disse-me: Nós queríamos os seus arquivos e tudo. E eu fiquei surpreendido, mas pensei, eu realmente aqui não tenho hipótese, isto por muito cuidado que eu tenha com os meus arquivos, etc, mas isto não pode ser, vão crescendo e a minha idade já não é de prever um futuro longo e, portanto, aceitei. Até porque muitas delas ou já desapareceram ou estão mal tratadas, não todas, felizmente. De maneira que quando veio a notícia nos jornais, que eu que tinha destinado para o Canadá, para o CCA, eu fui tratado nos jornais como uma espécie de traidor à pátria e eu tive que fazer uns esclarecimentos para publicação, a explicar porque é que estavam no Canadá ou porque é que estavam destinados ao Canadá, e isto porque não havia nenhuma iniciativa em Portugal. E depois o CCA fez uma coisa, muito simpática, para mim e para Portugal, perguntou-me quem eram as instituições que aqui teriam consistência para uma parte dos arquivos. E eu indiquei a Gulbenkian, muito conhecida, e aqui no Porto o museu de Serralves. E o tal italiano veio e fez a proposta de uma parte dos arquivos ficarem em Portugal. E eu concordei se tal fosse possível, e foi, sendo para mim uma grande satisfação, porque foi a abertura, ou um reforço, pois antes houvera arquivos com qualidade em Portugal tal como a arquitetura moderna nos anos 20, 30, 40 estava a par daquilo que se fazia na Europa sendo conhecida e fazia ainda contactos internacionais. Mas depois perdeu toda a dinâmica que tinha por falta de fundos e no fundo vontade política, pois perdeu um grande diretor, que saiu, na impossibilidade de manter aquilo em funcionamento credível. O recomeço foi só uns anos mais tarde.

Mas em Portugal, que hoje tem dinheiro da união europeia, não era tempo de reviver esse reconhecimento e talvez aumentá-lo?
Não, não, mas isso acontece e sobretudo no Serralves que está a desenvolver fortemente o setor da arquitetura. De tal modo que o novo edifício do complexo Serralves, que eu já projetei e que espero que comece em breve a construção, uma parte importante desse novo edifício destina-se à arquitetura. Foi uma achega do Canadá, fundamental para o bem da arquitetura e para o possível ultrapassar desta situação que é europeia, em relação à arquitetura. A europa é isto e eu não sou contra a comunidade europeia, mas no que se refere à arquitetura, é um destrate.

 

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A arquitetura tem de representar o país onde é feita, a cultura do país. Tem praticado arquitetura e tem feito prédios em muitas partes do mundo. O que é que o atraiu para ir à Coreia, ao Japão ou à China, para desenhar prédios que realmente eram a projeção da arquitetura e da cultura daquele país?
A possibilidade de trabalho, simplesmente. Eu devo dizer que fiz parte de uma organização de trabalho, umas “brigada”s, criadas logo após a revolução de 74, chamadas, Serviço Ambulatório de Apoio Local. Que era um serviço de assistência, projetos e construção para as muitas famílias em condições de habitação tremendas. No Porto, por exemplo, metade da população vivia em Ias, nos anos 50. Depois houve uma ligeira recuperação, mas irrelevante. Era portanto, uma família inteira a viver em 4 metros e meio por 4 metros e meio, uma tipologia de alas contínuas no interior dos quarteirões, em condições realmente terríveis. E, portanto, o programa onde eu trabalhei destinou-se exatamente e sobretudo às Ias, erradicação das Ias, que era um tema que vinha detrás mas nunca enfrentado de forma decisiva. Esse programa infelizmente durou dois anos. Depois houve uma mudança política em Portugal, portanto, houve um deslize, mais diretrista, não de direita fanática, mas realmente direi dos programas sociais a receber uma queda. Quem trabalhou para esse programa foram poucos arquitetos e muitos estudantes, houve uma participação fortíssima de estudantes, e como o assunto mexia com muitos interesses, os arquitetos foram marginalizados. Quando acabou o programa não tinha, pura e simplesmente, nenhum trabalho e os arquitetos que trabalharam para isso eram apontados como incompetentes, incompreensíveis, etc. De certo modo isso foi-me favorável, porque este programa, até por condições políticas gerais, em relação ao problema social, à habitação para todas as pessoas, etc, era um tema forte nesses anos 70. Os trabalhos aqui em Portugal tiveram muita divulgação na Europa e por isso eu fui chamado. Veio aqui um holandês, vereador da habitação, que em Aia visitou um pouco do que eu tinha feito. E daí fiz um grande conjunto em Aia, mas antes já tinha sido chamado pela mesma razão para Berlim, e de maneira que tive a oportunidade de trabalho. O problema foi que depois com esta mania que há de especialização, eu que antes e durante algum tempo estava ligado a pequenas moradias, passei a estar ligado à habitação social, e até ouvi dizer que eu era um especialista da participação e depois durou uns anos até passar a ter outros projetos. Mas agora ainda estou um bocado preocupado porque já fiz bastantes museus e começa a haver a ideia de que eu sou um especialista de museus. Mas o arquiteto é um especialista de não ser especialista. E a formação de um arquiteto implica fazer obra pública, privada, de grande e pequena escala, porque na cidade tudo isto está em conjunto. Eu acho que é difícil alguém fazer um bom edifício, de grande escala, se não tiver feito uma pequena casinha. Aqui no Porto, o grande volume do Palácio do Bispo do século XVIII, que é de um grande arquiteto italiano que veio para cá, e ficou cá, e morreu cá, Nicolau Nasoni, é um grande bloco rodeado por pequenas casinhas e a dimensão dele e a beleza e o destaque dá à cidade vêm exatamente de estar rodeado por outra escala.

Tem feito, como disse, arquitetura de todos os modos. Eu penso que na passagem dos anos de 60 para os 70 a arquitetura mudou um pouco em Portugal ou a forma como foi praticada. Depois de 1975 penso que haveria, talvez, um pouco mais de capacidade para “experimentar” certas coisas que se faziam.
Não se perdeu essa atenção, em relação à habitação, por exemplo, para o grande mundo, e em relação ao contexto social, mas perdeu a força que teve. Não se perdeu a influência desse período, no entanto perdeu-se a intensidade. E em relação à obra pública, sobretudo depois da entrada na comunidade europeia com os fundos que vieram na altura e que ainda estão a vir, (também deve estar para acabar breve), teve um grande impulso.
Qual é a palavra que talvez o defina na maneira como vê a arquitetura e o desenho? Uma coisa importante para si?
Uma coisa importante é não apagar a dúvida que é quando se encara um projeto específico. O que eu acho necessário e importante é não considerar eu sei, eu disto sou especialista e para onde aplicar. Não, é preciso entrar nos problemas e detetar quais são as dúvidas, que hipóteses há de resolver aquele problema, não deixar nenhuma para trás, até uma escolha. E, portanto, há um primeiro período que é de exploração seja qual for o projeto e seja qual for a experiência do arquiteto, e estou a falar em relação a mim. Existe assim um período de exploração onde se utilizam métodos, por vezes, nem sempre aceites, mas que para mim fundamentais, que são todas as ferramentas que o arquiteto tem complementares, nenhuma delas suficiente, mas em conjunto para fazer essa exploração. Eu uso muito o esquiço, por exemplo, porque é muito rápido. Eu posso em segundos tentar um caminho e tentar logo outro e compará-los e fazer essa assimilação do que são as dúvidas e a partir daí de uma forma larga quais são as respostas.

Que importância é que dá aos exteriores relativamente ao espaço verde, árvores e à natureza? O que é que isso influencia nos seus prédios e qual é a importância que tem no desenho final que quer?
Depende. Se eu faço um projeto aqui no Porto, numa rua do século XVIII, não há árvores, necessariamente. Mas há um outro tipo de relações. Quer dizer o contexto em que é inserido um novo projeto, é fundamental para que esse novo projeto não seja um capricho, uma coisa não adequada, mas que se insira num todo. Eu gosto que o projeto que eu faça aqui ou ali, pareça no final como tendo estado lá sempre. Isto não quer dizer mimetismo. A linguagem por muitas razões é outra, necessariamente, mas há outro tipo de diálogo de convivência que vai para além da linguagem, sem definição da linguagem. É isso que eu procuro. Agora em relação ao que fala é um tema fundamental, hoje, ligado aos temas tão falados da sustentabilidade. A relação entre o urbano e a natureza, em muitos aspetos, também tendo haver com essa sustentabilidade e que são muito debatidos, mas muitas vezes dificilmente aplicados no Canadá. Portugal é muito pequenino, mas também tem muito espaço à sua escala que está progressivamente com tentativas de quebrar isso mas ainda não eficazes, de todo. Há territórios quase abandonados, em consequência da emigração que foi tão forte e também da concentração no meio urbano ao longo da costa e não com muita profundidade. E depois há grandes espaços, à nossa escala, abandonados devido à emigração da população das aldeias e essa relação sábia com a natureza que havia vinda da experiência, acabou. Depois vêm os problemas, por exemplo, os fogos e depois vêm os problemas com o mar, que é todo o longo da costa portuguesa, como é também com a poluição… E depois também que é um problema mundial, que já espetacularmente se traduz nas imagens que nós vemos na televisão, o gelo a cair do ártico. De maneira que há muito que fazer. É difícil encontrar realmente a vontade e a energia sobretudo a uma escala mundial. O mundo é global, tanto se fala na globalização, mas tem que ser global no bom sentido. E aí nós vemos na recente união que houve em Washington, nos Estados Unidos, em que realmente não há acordo. Nem há declarações de desejo de acordo, mas depois há toda a pressão dos interesses económicos. E realmente passam os anos e não há nada que dê assim uma nota de esperança absoluta.

Hoje continua a desenhar, continua a sua arquitetura, continua a sua arte. Desenha para o presente ou para o futuro, em tudo o que faz hoje?
Desenhar para o futuro principia em desenhar para o presente. De maneira que quando desenho hoje tenho, por exemplo no espírito presente, que o que estou a fazer vai durar mais do que eu. Posso até imaginar e colher alguns dados para quais vão ser algumas transformações, mas nunca posso realmente abarcar, ter conhecimento disso. Mas esse aspeto do cumprimento das funções para que somos chamados, a arquitetura é um serviço e quando se faz um serviço seja para um governo, um estado, seja para um particular, tem que cumprir com um objetivo ou então desiste, ou seja, se não reconhecer bondade naquilo que lhe é pedido, pode desistir. Não desistindo tem que prestar esse serviço. E uma das coisas que tem que cumprir é a procura da solução para a função que é pedida. E eu sou por isso um funcionalista, costumo dizer. Mas para mim a função não se fica no imediato. O respeito pela função, e numa fase do projeto isso é muito importante, significa também uma espécie de libertação da função imediata. Portanto neste aspeto pode-se dizer que estou objetivamente a pensar no futuro daquilo que estou a fazer. E fazer o melhor possível e a buscar os exemplos da história. Porque o máximo para mim é o convento. Claro que um convento é projetado para uma comunidade que tem uma vida muito especial, com os seus rituais. E, portanto, os conventos que através dos séculos foram muito bem resolvidos com concessões e condições grandes, atualmente, são municípios, hospitais, quartéis, casas, escritórios, tudo o que se possa imaginar. Quer dizer o cumprir com o empenho a função, não significa, ou não deve significar, limitar a capacidade de desempenho daquele edifício.

E umas das razões da minha pergunta é que em primeiro lugar vou perguntar se alguma vez fez algum projeto em que hoje olha para ele e não gosta muito, e se o fizesse outra vez, se o faria diferente?
Posso lhe contar uma história sobre isso. Eu fiz no princípio dos anos 60 um restaurante que ainda existe, aqui perto, sobre o mar, num sítio muito bonito que se chama Boa Nova. Passados 15 anos pediram-me para fazer um refrescamento do edifício, pois à beira-mar sofre ali com as exigências da implantação. E, portanto, fui chamado, (aquilo pertence ao município de Matosinhos), para uma manutenção do edifício, porque durante esses 15 anos não esteve muito bem tratado. Perdeu-se o hábito, que era muito forte em Portugal, da manutenção, por razões históricas, mudanças sociais, etc. De maneira que visitei o edifício pois já lá não estava há muito tempo. Mas quando entrei comecei a ver umas coisas que não gostava, disse aquilo ali vou mudar, não gosto. E depois comecei a olhar à volta e disse, mas se eu mudar aquilo, também tenho que mudar ali. E assim sucessivamente. Até que concluí, ou vou demolir o edifício ou vou manter tudo, recuperando-o apenas. E depois pensando melhor nestas duas alternativas, disse, se quando eu pensei mudar ali vejo que tenho que mudar noutro sítio, e assim sucessivamente, quer dizer que neste edifício há uma lógica global. Há um ambiente em que tudo funciona num determinado sentido. Portanto, não deve ser tão mau quanto isso. E então decidi manter o que estava, pois as ideias vão mudando ao longo da vida, e naquela altura era outro arquiteto, mais novo, tinha 25 anos, e hoje penso de outra forma, é normal que quisesse mudar algumas coisas.

 

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Falando agora um pouco de Portugal e das suas obras fantásticas que tem feito cá. Quando vê o prédio acabado e a funcionar, vai ver como funciona e se está a funcionar como deve ser, etc … às vezes os críticos vão depois fazer os seus comentários e nem sempre são bondosos com o que dizem. Costuma tratar disso?
Em alguns casos, olhe neste, por exemplo do restaurante, chamam-me passados uns anos, mas isso acontece cada vez menos. Porque uma outra característica do nosso tempo era o desejo da novidade, do diferente, etc … quando um edifício qualquer, que tenha projetado um arquiteto, precisar de uma intervenção, as pessoas e às vezes a próxima geração já quer outra coisa. Tenho tido casos, alguns recentes em que me chamam, gente que reconhece a qualidade do edifício, e que tem o cuidado de me mandar, coisa que antes era obrigatória, direitos de autor, mas hoje não é. Em muitos casos querem outra coisa. É um sinal de que tenho aspetos positivos e aspetos negativos. Repare, no tempo do meu bisavô e até do meu avô, as famílias eram grandes. E quando morria o patriarca, designava o filho mais velho, que era o morgado, e ficava o novo proprietário. Isto por gerações. Portanto, a preservação é garantida com base numa injustiça grande em que os outros filhos ficavam todos dependentes do morgado. E isso acabou, mas era bom. Lá está, tem o lado positivo. Mas por outro lado, hoje há muita gente a morar só e as famílias são pequenas. Aliás vi no outro dia um programa na televisão sobre a preocupação da baixa natalidade em Portugal e da perda de população. Nos últimos 10 anos Portugal perdeu 210 mil pessoas.

Tem dedicado tantos anos da sua vida a esta arte que realmente é um espólio incrível. Tem também ganho vários prémios de reconhecimento do seu trabalho, incluindo o Prémio Nobel da Arquitetura, o Prémio Pritzker. Acha que isso é um reconhecimento do seu trabalho ou a visão que alguém teve do seu trabalho. Estes prémios têm reconhecido todo o esforço que tem feito na sua vida ou ainda não representam tudo o que pensa que devia ser reconhecido?
Os prémios são uma satisfação, sem dúvida, e além disso, eventualmente, abrem possibilidades de trabalho. Agora e nesse aspecto fico muito satisfeito de ter esses prémios. Depois estou plenamente consciente que poderia ter tido muitos outros, porque a atribuição dos prémios depende do contexto, do momento, quer dizer, depende do júri, depende do que anda no ar, aqui ou ali, no geral. Portanto eu não durmo sobre os prémios, já tenho tudo o que queria, sou grande. Eu sei muito bem o momento em que isso acontece, independente de ter que haver algum reconhecimento, não estou a armar ao modesto, mas sim a reconhecer. Quando eu obtive o Prémio Pritzker, havia n arquitetos que na minha opinião podiam perfeitamente ter sido eles a obtê-lo. É muito contextual.

Um homem de Matosinhos, a viver em Portugal, a ver um país desenvolver, uma carreira longa, produtiva, que vai deixar impacto neste país e no mundo para sempre, nomeadamente em Serralves, na Gulbenkian, no Canadá e noutros sítios. Está satisfeito com o que fez até hoje e com o que quer ver no futuro da arquitetura em Portugal?
O que fiz até hoje é o mesmo, digo eu. É muito diferente, evidentemente. Não gosto daquela obra, e gosto desta, e aquilo é um desastre, e isto, sim senhor, está bem. Para mim cada arquiteto está sempre a trabalhar num projeto, podem ser diferentes obras, mas há um projeto. E aí há uma evolução que depende muito do contexto, da época, da própria intensidade da sua formação ao longo dos anos. E, portanto, eu não repúdio nenhuma obra, uma peça única, que faz parte de um projeto. E estou a falar com sinceridade, daquilo que penso. Agora umas são melhores, outras piores. É outra coisa, mas é um percurso e depende dos contactos que temos. Em relação a isso, deixe-me dizer alguma coisa sobre o Canadá. A primeira vez que estive lá foi em 1983, num congresso, organizado por uma universidade, em que havia vários organizadores e o tema era “Arquitetura e Identidade Cultural”. Primeiro tive a oportunidade de visitar pela primeira vez o Canadá e gostei muito. Depois tive muitos contatos e conheci arquitetos, porque haviam muitos convidados no congresso, era bastante gente, e vi alguns que conhecia. Foi uma coisa interna, mas também aberta ao público. Foi importante e foi-me feita uma entrevista e publicada numa revista de arquitetura. Mas uma coisa de que me lembro bem é de visitar uma rua em Montreal, uma rampa longa, com casas de dois ou três pisos, e a arquitetura fez-me lembrar do que tinha visto na Holanda e vivia ali muito português. E lembro que na altura contaram-me que a comunidade portuguesa fez a recuperação dessas casas e teve o prémio da cidade e julgo que ainda estive com algum português. Viajei muito, agora já não posso, e concluo que visitei 40 países. Umas das experiências é que estando fora está-se muito mais atento, aberto e consciente do que é o país de origem. E, portanto, nós devemos muito à forma como fomos tratados, nem sempre bem, mas falando no geral enquanto emigrantes. E por isso uma coisa que me impressiona é quando tenho alguma notícia de emigrantes mal recebidos no meu país. É preciso que não tenham memória ou no caso dos mais jovens que não estudem.

Manuel Da Costa

Transcrição: paulo Perdiz

 

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